O mês é janeiro, e o ano é 2021. Mas poderia ser qualquer outra data no passado recente da gestão da Saúde no Estado do Rio. Mais uma vez, uma Organização Social está sendo contemplada com um contrato milionário, num processo cheio de indícios de irregularidades.
Nesta quinta (28), a OS Cruz Vermelha Brasileira Filial do Rio Grande do Sul (CVB-RS) ganhou um processo de seleção para a gestão do Hospital Modular de Nova Iguaçu, cuja obra foi concluída em junho do ano passado, ao custo de R$ 62 milhões, mas até hoje não recebeu um paciente sequer.
A entidade irá receber R$ 15,8 milhões por mês para gerir a unidade, que vem sendo anunciada como referência para tratamento de Covid. O contrato, de até um ano, pode chegar a R$ 190,3 milhões.
E agora chegou-se ao ponto de a Secretaria estadual de Saúde ignorar um trecho de uma decisão do Tribunal de Contas do Estado (TCE) no processo de contratação.
Novo edital, mesmos problemas
Para se ter uma ideia do tamanho da confusão administrativa, havia sido lançada em 21 de dezembro uma dispensa de seleção para a contratação da OS que iria gerir o Hospital Modular. Esta modalidade é equivalente a uma dispensa de licitação.
No início de janeiro, alegando que existia uma decisão do TCE que proibia esse tipo de contratação sem um prazo mínimo de sete dias para que os interessados apresentassem propostas, a Secretaria de Saúde cancelou o processo.
Foi lançado então um outro edital, cujo resultado foi divulgado nesta quinta. A grande questão é que, com exceção da mudança de prazo, este segundo foi praticamente uma cópia do primeiro. E que também carregou outros problemas apontados pela Corte de Contas.
Sem comparação
Além do prazo, a decisão do TCE citou a necessidade de “estimativa de preços (…) com diversificação de fontes de consulta”; “termo de referência com a devida discriminação dos valores estimados para os investimentos” e “relação de todos os itens de serviços que integram as rubricas do orçamento, em especial, da rubrica ‘Contrato e Consumo’, acompanhada da planilha de quantitativos e preços unitários que demonstre como foi realizado o seu orçamento”.
O que acontece é que, tanto no primeiro quanto no segundo processo de contratação, não há essas especificações determinadas pelo tribunal. O primeiro edital, aliás, foi praticamente uma cópia do segundo, com mínimas modificações.
A ponto de o segundo ter por três vezes a expressão “dispensa de seleção”, que se tratava na verdade da modalidade concebida inicialmente e que foi cancelada.
Sem uma estimativa de preços com bases precisas, a Secretaria de Saúde estipulou um valor máximo de R$ 20,9 milhões mensais. Como apenas a OS Cruz Vermelha foi habilitada – houve outras quatro entidades eliminadas por falta de documentação -, não existiu, no fim das contas, nenhum comparativo de preços válidos que pudesse embasar se a proposta final da vencedora (R$ 15,8 milhões) foi realmente econômica para os cofres do estado.
Secretário sabia
O curioso é que em 21 de dezembro – no mesmo dia do lançamento da dispensa de seleção que acabou sendo abortada – o secretário estadual de Saúde, Carlos Alberto Chaves, foi informado da decisão do TCE que listava os pontos a serem cumpridos na contratação.
Chaves, porém, só agiu no dia 12 de janeiro. E ele na verdade mandou que fosse anulado apenas um outro processo de chamamento de OS para o Hospital Modular, que estava parado e havia sido aberto ainda na gestão do ex-secretário Edmar Santos. Enquanto isso, porém, corria solta outra contratação com os mesmos vícios apontados pelo TCE sem que o secretário se manifestasse.
O documento assinado por Chaves que anulou a contratação aberta na gestão de Edmar Santos mostra inclusive que ele tinha ciência da necessidade de uma planilha de preços e de informações sobre valores unitários de itens, algo que não foi cumprido na contratação aberta em sua gestão.

“Contrato vigente”
A falta de estimativa precisa de valores na contratação da OS para o Hospital Modular já havia sido citada em documentos internos da própria Secretaria de Saúde. A situação chega a ser tão insólita que um parecer da Subsecretaria Jurídica citou o fato de ter havido uma justificativa de que o valor estimado seria mais econômico do que o do “contrato vigente”.
O detalhe é que nunca houve contrato vigente porque o hospital nunca foi inaugurado.
“Por se tratar de matéria estritamente técnica, não cabe manifestação da Subsecretaria Jurídica quanto a este ponto, em ordem a testar ou refutar a economicidade. De toda sorte, é importante frisar que não há mais nenhum documento no processo capaz de atestar a economicidade da contratação, o que lança dúvidas sobre o parâmetro considerado para a fixação do preço do contrato.
Ademais, vale registrar que há afirmação nos autos de que valor do custeio mensal na nova contratual seria mais econômico que o praticado no ‘contrato vigente’, sendo que não há contrato vigente, nem mesmo o hospital modular entrou em operação. Nesse sentido, trata-se de erro material que precisa ser corrigido”, diz um parecer de 22 de dezembro.
Diferenças de valores
Outra curiosidade é que, apesar de o objeto ser exatamente o mesmo, a Cruz Vermelha Brasileira fez duas propostas orçamentárias completamente diferentes na comparação entre o primeiro processo de dispensa de seleção com o segundo, de seleção regular.
No primeiro, a OS apresentou um valor de cerca de R$ 17,9 milhões mensais. No que acabou efetivamente valendo foram cerca de R$ 15,8 milhões.
Basta olhar as duas tabelas abaixo para ver que há mudanças absolutamente aleatórias. A rubrica salários, por exemplo, cai de R$ 5 milhões para R$ 3,1 milhões por mês. A soma de medicamentos e materiais de consumo cai de R$ 6,5 milhões para R$ 4,7 milhões. Alimentação, por sua vez, sobe de R$ 350 mil para R$ 400 mil.


PGE ignorada
E os problemas não param por aí. Além do TCE, a contratação da OS do Hospital Modular também foi lançada à revelia da Procuradoria Geral do Estado (PGE), ao contrário do que deveria ocorrer em casos como este, que envolvem valores acima de R$ 10 milhões.
“Deverá o órgão de origem prestar esclarecimentos quanto à publicação de edital de chamamento público na pendência de análise definitiva Procuradoria Geral do Estado, o que revela descumprimento de exigências legais e regulamentares sabidamente aplicáveis, além de demonstrar especial desconsideração com a atuação do Órgão Central do Sistema Jurídico, que vem atendendo de forma ágil e eficiente às demandas da Secretaria de Estado de Saúde.
Registro que a citada conduta não é inédita, o que revela a existência de deficiências organizacionais e de planejamento no âmbito da pasta estadual e que, portanto, merecem ser objeto de especial atenção”, afirmou o procurador-assessor Rodrigo Zambão, em 29 de dezembro.
Dois meses em um
Tanto na primeira quanto na segunda contratação apenas a Cruz Vermelha apresentou proposta considerada válida. A confusão no processo foi tamanha que todos os documentos chegaram a ser colocados em sigilo no Sistema Eletrônico de Informações (SEI) nesta quarta (27). No dia seguinte, porém, voltaram a ficar públicos sem maiores explicações.
Pelos documentos que constam no processo, a OS vencedora ainda terá um presente logo de cara. No primeiro mês de gestão receberá o valor de dois. Portanto, haverá um repasse de R$ 31,6 milhões.
Não bastassem todos os problemas da contratação, a Cruz Vermelha ainda amarga um acórdão do TCE que considerou a entidade inidônea. Pela decisão, a OS estaria impedida de contratar com o estado nos próximos cinco anos. A informação foi revelada pelo RJ2.
A entidade, porém, está recorrendo da decisão, o que foi considerado pela Subsecretaria Jurídica da Secretaria de Saúde como suficiente para que ela não fosse eliminada da seleção.
Outro lado
Nesta terça (2), a Cruz Vermelha Brasileira Filial do Rio Grande do Sul enviou nota, através de seus advogados, afirmando que “diferente do que foi veiculado na reportagem, o Estado do Rio de Janeiro não desprezou trechos de decisão do TCE para realizar contratação com a Organização Social, mas tão somente cumpriu a Lei acerca da Suspensão dos efeitos sancionatórios quando a parte sancionada interpõe recurso contra a decisão”.
Segue a nota dizendo que “no processo licitatório realizado pelo Estado do Rio de Janeiro para administrar o Hospital Modular de Nova Iguaçu, a Cruz Vermelha Brasileira Filial do Estado do Rio Grande do Sul somente se consagrou vencedora porque não figura na condição de inidônea, isso porque o ofício de intimação do acórdão, datado de 23 de novembro de 2020, é claro no sentido de que a vigência da sanção se daria tão somente após o trânsito em julgado”.
“Ocorre que em 16 de dezembro de 2020, este corpo jurídico, dentro do prazo legal (30 dias), interpôs recurso de reconsideração, o qual, segundo dispõe o art. 70, da Lei Complementar nº 63/90, confere efeito suspensivo ao acórdão. Desta maneira, a Cruz Vermelha Brasileira Filial do Estado do Rio Grande do Sul não figura na condição de inidônea. Isto, aliás, restou reconhecido expressamente pelo próprio Procurador do Estado do Rio de Janeiro, Dr. Felipe de Melo Fonte, em recente manifestação exarada no dia 06 de janeiro de 2021”.
A íntegra da nota pode ser acessada aqui.
*Nota do blog: O blog esclarece que o título da reportagem não se refere à decisão de inidoneidade, mas sim a outros pontos de decisão do TCE relativos à estimativa de preços. Os pontos levantados pela Organização Social foram citados na versão original da reportagem, que inclusive já trazia o link para o parecer do procurador citado.
**A reportagem foi atualizada às 15h06m de terça (2 de fevereiro) com a nota da CVB-RS
***Foto em destaque: Hospital Modular de Nova Iguaçu / Divulgação
Vamos tentar entender esse enrosco. Esse Secretário de Saúde, Carlos Alberto Chaves, foi Superintendente de Regulação na gestão de Sérgio Côrtes no governo Sergio Cabral (ambos presos por corrupção). Saiu dez anos atrás porque rompeu com Côrtes. Agora, segundo fontes, foi indicado por outro ex-secretário: o deputado federal, Doutor Luizinho, do Progressista. Doutor Luizinho nega e diz que apenas apoio o nome de chaves depois que ele já foi indicado. Esse Luizinho goi Secretário de Saúde no Governo Pezão (preso por corrupção). Um detalhe importante é que este Luizinho é de Nova Iguaçu onde possui sua base politica. Estranhamente, a maioria desses rolos tem origem em Nova Iigua.
Tem muito dinheiro, só não tem pra dar a devida correção monetária no vencimento base do servidor estatutário da Saúde que pela lei 1179\87 se tivesse correção monetária hoje estaria em 7428,38 e no entanto está em 1665,62! Uma vergonha!