Apesar de um parecer jurídico interno ter levantado dúvidas a respeito das condições da parceria, o governo do Estado do Rio está fazendo o apoio institucional do projeto Cidades Monitoradas, concebido por duas empresas privadas para a realização de testes de Covid em profissionais que trabalham em áreas relacionadas à atividade turística.
Logo de cara, há dois pontos que chamam a atenção: uma das empresas, a MedLevensohn, é alvo desde o ano passado de uma ação de improbidade administrativa que envolve exatamente a compra de exames pelo estado no início da pandemia. E o atual secretário de Saúde, Alexandre Chieppe, foi diretor médico da companhia ao menos até maio passado.
Mesmo não prevendo investimento financeiro direto do estado, a parceria foi questionada em 13 de maio pelo procurador Marcello Cineli, da assessoria jurídica da Secretaria de Turismo, pasta responsável pelo apoio ao Cidades Monitoradas.
Segundo ele, como “há propósitos econômicos e lucrativos”, poderia existir “uma possível convergência do interesse público com o privado”. Cineli pediu mais informações para poder realizar uma análise final, mas nenhum novo documento foi inserido no processo administrativo com as respostas demandadas.
O projeto foi lançado este mês, mas sequer houve assinatura de contrato ou qualquer publicação em Diário Oficial.
Carta de apoio
Antes do parecer jurídico, no dia 11 de maio, o secretário de Turismo, Gustavo Tutuca, já havia assinado uma carta afirmando que iria apoiar o Cidades Monitoradas e se colocou “à disposição na interlocução com outras secretarias e prefeituras locais”.
Pelo projeto enviado à pasta pela MedLevensohn e pela empresa Veus Saúde, será realizado um monitoramento da incidência de Covid em profissionais do setor turístico.
Ainda de acordo com a apresentação enviada ao estado, taxistas, por exemplo, podem se testar gratuitamente desde que colem adesivos do Cidades Monitoradas em seus veículos. Já para trabalhadores das áreas de hospedagem e alimentação, os exames seriam cobrados “com condições de preços muito especiais”.

Nos textos de divulgação da iniciativa, porém, a assessoria de imprensa da MedLevensohn tem afirmado que a “testagem é voluntária e totalmente gratuita”.
Na última quinta (24), houve o lançamento do projeto em um evento num restaurante da Zona Sul do Rio. Além de Gustavo Tutuca, estavam presentes o secretário de Saúde, Alexandre Chieppe, e o deputado federal Dr. Luizinho (Progressistas). O logotipo do governo estadual foi utilizado no material promocional.

Público X Privado
Servidor de carreira do estado, o médico sanitarista Alexandre Chieppe já teve diversos cargos comissionados nos últimos anos. Antes de assumir como o quinto secretário da pandemia, ele foi subsecretário de Vigilância em Saúde.
Apesar do cargo público, é possível encontrar na internet diversos registros de Chieppe sendo apresentado como diretor médico da MedLevensohn. Foi publicado, por exemplo, em 7 de maio, num site especializado em notícias sobre o setor laboratorial, um texto falando sobre um novo teste de Covid que está sendo trazido ao Brasil pela empresa.
Há destaque para uma fala do médico:

A assessoria de imprensa da empresa afirmou que Chieppe “encerrou suas atividades de consultor médico após convite para assumir a Secretaria de Saúde”. “Reiteramos que Chieppe já desempenhava papel de consultor médico no setor público e privado, antes da nomeação”.
A Secretaria de Saúde também disse (íntegra no fim do texto) que ele deixou de ser prestador de serviço da MedLevensohn antes de assumir a pasta. E que participou do lançamento do Cidades Monitoradas como tem feito em outros eventos relacionados à pandemia.
Pendência milionária
No comando da Secretaria de Saúde desde 5 de maio, o médico sanitarista pode ter que lidar diretamente com assuntos que envolvem interesses financeiros da MedLevensohn.
Em fevereiro deste ano, a empresa solicitou à pasta o pagamento de R$ 12,7 milhões referentes à compra de testes realizada em abril do ano passado, que entrou na mira do MP por suspeitas de direcionamento ilegal da contratação.
A secretaria já havia pago, em abril de 2020, R$ 1,4 milhão pelos exames. Mas a maior parcela, segundo a companhia, ainda está pendente apesar de todo o material já ter sido entregue.
Analise de preço
A última movimentação no processo que analisa o pedido da MedLevensohn é do fim de abril deste ano. À época, a Subsecretaria Executiva de Saúde havia solicitado que fosse realizada uma análise do preço do teste de Covid da empresa (R$ 94,10).
Por decisão de agosto do ano passado do juiz Bruno Bodart, da 6ª Vara de Fazenda Pública do Rio, a empresa só pode receber o valor pendente se houver esse estudo a respeito do preço.
Alegando graves prejuízos financeiros, a companhia recorreu da decisão que condiciona essa análise ao pagamento, mas o pedido ainda não foi analisado pelo Tribunal de Justiça.
Doação de seringas
Apesar de não ter recebido os R$ 12,7 milhões do estado, a MedLevensohn doou 600 mil seringas em janeiro deste ano para a Secretaria de Saúde para a utilização na vacinação contra a Covid.
No caso do projeto Cidades Monitoradas, a empresa também vem divulgando tratar-se de uma ação gratuita e voluntária que pretende oferecer 1 milhão de testes contra a Covid.
Já nos slides de apresentação enviados ao estado, além de citar a cobrança por “preços muito especiais” para profissionais dos setores hoteleiro e de alimentação, a companhia destacou que haveria possibilidade de “excelente retorno político, econômico e para a Saúde Pública” com a parceria com o governo na divulgação.

Ação de improbidade
A ação de improbidade administrativa do Ministério Público contra a MedLevensohn tramita na 6ª Vara de Fazenda Pública desde julho do ano passado ainda sem decisão de mérito.
Outras três empresas são rés assim como o ex-subsecretário executivo de Saúde Gabriell Neves e o ex-secretário de Saúde Edmar Santos.
A MedLevensohn não quis se manifestar especificamente a respeito do processo. Segundo o MP, “o procedimento (de contratação) foi conduzido desde o início para favorecer a companhia, que de tudo estava ciente e de acordo, em detrimento dos princípios da legalidade, moralidade e impessoalidade administrativa”.
A empresa somente afirmou em nota que “ao longo dos seus 18 anos, é, sempre foi e sempre será uma empresa idônea, ética e que sempre trabalha para operar de forma saudável financeiramente”. “Além disso, vale ressaltar que confiamos plenamente na Justiça brasileira e que o valor em questão (R$ 12,7 milhões pendentes), embora significativo, não é mais expressivo que nosso patrimônio ético e moral”, concluiu.
O que diz o Turismo
A assessoria de imprensa do deputado Dr. Luizinho disse que ele compareceu ao lançamento do Cidades Monitoradas por convite da Secretaria de Turismo e também da Rádio Tupi da qual ele é debatedor fixo e que teve dois apresentadores participando do evento.
Abaixo, a íntegra do posicionamento da Secretaria de Turismo:
“A secretaria tem trabalhado para que a retomada do setor se faça de maneira segura e gere desenvolvimento econômico e social. Com o objetivo de incentivar e apoiar iniciativas que auxiliem na retomada das atividades econômicas, movimentando o setor do turismo, a pasta apresentou apoio institucional ao projeto Cidades Monitoradas, capitaneado pela iniciativa privada, que visa a testagem gratuita de profissionais ligados ao setor.
O apoio da secretaria é institucional, sem previsão de contrapartida. A operacionalização do projeto está a cargo das empresas envolvidas.
A secretaria esclarece, ainda, que apoia e incentiva iniciativas que tenham como objetivo auxiliar e apoiar toda a cadeia produtiva do turismo no cenário de retomada das atividades”.
O que diz a Saúde
Por fim, a nota da Secretaria de Saúde:
“A secretaria esclarece que Alexandre Chieppe não é diretor médico da empresa e deixou de ser prestador de serviço antes de assumir o cargo de chefe da pasta. O secretário participou do lançamento do Cidades Monitoradas conforme tem feito com todos os eventos do Governo do Estado que tenham relação com o combate à pandemia.
A Subsecretaria Executiva informa que os 150 mil testes para Covid-19, referentes ao contrato 28/2020 assinado em 1º de abril de 2020 com a MedLevensohn, no valor total de R$ 14.115.000, foram todos entregues ao estado e distribuídos aos municípios. Em 17 de abril de 2020, a Secretaria de Saúde realizou o pagamento de R$ 1.411.500 à empresa, restando pendente a quantia de R$ 12.703.500. O valor é objeto de compensação caso seja identificado o sobrepreço na aquisição dos testes.
Em setembro de 2020, o secretário de Saúde da época bloqueou todos os pagamentos relativos a contratos firmados com base na lei federal 13.979/2020 (que flexibilizou as compras na pandemia), na qual o contrato se insere. Em dezembro de 2020, foi expedida decisão definitiva sobre o caso, anulando o contrato com a empresa MedLevesohn.
Atualmente, a aquisição está em avaliação da área técnica, visando a aferição do valor de mercado da época, com o objetivo de identificar se houve sobrepreço. A medida segue orientações da Procuradoria Geral do Estado (PGE) e Auditoria Geral do Estado (AGE), após análise preliminar de cada contrato firmado fundamentado pela lei mencionada”.
*Foto em destaque: Lançamento do projeto Cidades Monitoradas com presença dos secretários de Turismo, Gustavo Tutuca, e Saúde, Alexandre Chieppe e do deputado Dr. Luizinho / Reprodução / Instagram