Espólio de Pasquale Mauro tem dívida de IPTU de R$ 91 milhões quitada após acordo com a Comlurb

Em meio a problemas financeiros, que chegaram a ameaçar os serviços de coleta e tratamento de lixo da cidade, a Comlurb assinou, no fim do ano passado, um acordo na Justiça, com a participação da prefeitura do Rio, que quitou, até agora, uma dívida de R$ 91,4 milhões de IPTU do espólio de Pasquale Mauro. Conhecido como o maior latifundiário da Barra da Tijuca e do Recreio dos Bandeirantes, o rico empresário italiano morreu no fim de 2016, deixando aos herdeiros dezenas de imóveis com pendências fiscais com o município.

O pano de fundo para o acordo é um processo que já dura mais de 30 anos, com cerca de 2.500 páginas distribuídas por 12 volumes, cujos principais pontos serão trazidos pelo blog ao longo desta reportagem. Pasquale Mauro entrou com uma ação contra a Comlurb em 1988 por problemas causados por um lixão aberto irregularmente, anos antes, pela companhia de limpeza pública, em parte de um terreno dele, no Recreio. O processo se arrastou, os valores foram crescendo, até que, agora, ficou acertado o ressarcimento através da quitação dos milhões em IPTU que o italiano passou anos a fio sem pagar.


“Esforços” da prefeitura

O acordo foi assinado em 13 de dezembro de 2018, dando um prazo de três meses para que a companhia de limpeza pública acabasse com os débitos dos imóveis de Pasquale Mauro. Apenas nesta terça (2), porém, saiu em Diário Oficial um despacho informando o pagamento dos R$ 91,4 milhões, omitido na publicação do dia 7 de fevereiro.

Perguntada pelo blog se houve um perdão fiscal por parte do município, a Comlurb – uma sociedade mista que tem a prefeitura como principal acionista – disse apenas que “efetuou o pagamento dos mencionados valores como quitação de condenação judicial, em estrito cumprimento das condições estabelecidas entre as partes”, sem dar maiores detalhes.

Já o Departamento Jurídico do espólio disse que “todas as dívidas de IPTU envolvidas no acordo foram quitadas pela Comlurb, constando, com isso, como arrecadação aos cofres do Município do Rio de Janeiro”. E que qualquer entendimento em sentido contrário é “absolutamente equivocado”.

Porém, um documento de 28 de março deste ano, que consta do processo judicial que ensejou o acordo, assinado pelo escritório de advocacia que representa a Comlurb, aponta “esforços da Municipalidade” para a quitação.

Mais R$ 5,2 milhões pendentes

O esforço, porém, não garantiu o encerramento do processo. Em 11 de abril, o espólio de Pasquale Mauro informou à Justiça que ainda aguardava o pagamento de mais R$ 5,2 milhões que constavam do acordo. Esse valor é referente a carnês de IPTU de imóveis deixados pelo empresário relativos a 2017 e 2018. Os R$ 91,4 milhões já quitados eram referentes a inscrições na Dívida Ativa.

A Comlurb ainda não se manifestou oficialmente no processo a respeito da pendência, mas a assessoria de imprensa da empresa afirmou que “o saldo, que representa aproximadamente 5% do débito negociado, é objeto de medidas para a sua definitiva regularização”. A companhia também disse que na negociação para o acordo obteve “substancial redução do valor (total) devido”.

O Departamento Jurídico do espólio disse que não considera que o acordo esteja em risco e que caberá à Justiça (5ª Vara de Fazenda Pública) decidir sobre o pleito.

Outro problema que ainda permanece são os honorários dos advogados de Pasquale Mauro. Eles pedem o pagamento de 10% do total do acordo. A Comlurb afirmou que a questão “segue em discussão quanto ao seu valor, sendo a execução de tais créditos realizada na forma das anteriores decisões no processo”.

Desde 2013, a companhia vem cumprindo uma decisão desta ação que determina que 5% de sua receita própria seja depositada em juízo todo mês. Até hoje, foram pagos, segundo a empresa, R$ 9,6 milhões, além dos R$ 91,4 milhões quitados em fevereiro.

E, para entender a origem de tudo isso, é preciso voltar bastante no tempo.

Um descaso histórico

Em registro antigo, que consta do processo judicial contra a Comlurb, bois pastam perto de restos de lixo na granja de Pasquale Mauro / Reprodução

Era 7 de dezembro de 1983 quando a Comlurb assinou um acordo de parceria com Pasquale Mauro. Dois dias antes, Marcello Alencar havia assumido a prefeitura. Pelo contrato, ficou estabelecido que um pedaço de uma propriedade do empresário, a Granja Calábria, num ainda bucólico Recreio dos Bandeirantes, abrigaria um aterro, para receber boa parte do lixo do município. E começou ali uma longa história, que retrata descaminhos da cidade que se estendem até hoje.

Não demorou muito para a relação entre a Comlurb e o dono de centenas de milhares de metros quadrados da Barra e do Recreio azedar. Pelo que estava acordado, o empresário esperava que a companhia nivelasse o terreno em sua propriedade com um aterro controlado, que obedecesse a legislação vigente. Não foi o que aconteceu. Formou-se um grande lixão a céu aberto que, soube-se depois, sequer tinha autorização da Feema, órgão estadual responsável pela fiscalização ambiental na época.

No dia 15 de junho de 1988, após infrutíferas tentativas de acordo, Pasquale Mauro entrou na Justiça contra a empresa de limpeza pública. Alegava, por exemplo, que o chorume sem tratamento jorrava da propriedade para córregos da região e que centenas de ovelhas da sua propriedade tinham morrido. A causa foi estimada em 2 milhões de cruzados, algo que em valores de hoje não ultrapassaria os R$ 150 mil.

Enquanto a ação se desenrolava na Justiça, a Comlurb simplesmente ignorava os órgãos ambientais que faziam sucessivos apelos para que as atividades do lixão fossem encerradas. Aliás, as tentativas de fechamento do aterro irregular começaram mesmo antes do processo de Pasquale Mauro. Em novembro de 1985, a engenheira da Feema Maria Clóris Holanda Araujo afirmou, num relatório da fundação:

“A Comlurb está consciente do efeito de tais práticas. Já em 1972 advertimos às autoridades competentes sobre os inconvenientes de transformar o Canal do Portela em vazadouro de lixo urbano, mas, infelizmente, todos os esforços neste sentido foram infrutíferos”.

O canal que margeia a Granja Calábria levava a poluição até a Lagoa de Jacarepaguá, que hoje segue castigada por outros despejos de esgoto e lixo.

A primeira decisão judicial

Em outubro daquele mesmo 1985, a Ceca (Comissão Estadual de Controle Ambiental) havia dado um prazo de um ano e meio para que o lixão fechasse. Nada feito. Em 1993, um relatório da Feema constatou que 30 toneladas de resíduos vindos da coleta domiciliar feita na Rocinha, por exemplo, ainda continuavam sendo diariamente despejadas no terreno, às margens da Estrada Benvindo de Novaes.

Somente em setembro de 1997 o aterro sem licença implementado pela Comlurb na granja de Pasquale Mauro foi desativado. Pouco mais de seis meses depois, em maio de 1998, a Justiça deu a primeira decisão favorável ao empresário no processo contra a empresa pública. O dano ambiental teria de ser reparado em seis meses. Ou a companhia teria que desembolsar o valor calculado por um perito anos antes em cerca de US$ 1,9 milhão.

Empresário também na berlinda

Obviamente, o imbróglio judicial não terminou com a primeira decisão. Ano a ano, a Comlurb entrou com diversos recursos, sofrendo derrotas consecutivas nos tribunais.

Curiosamente, no entanto, com o lixão da Comlurb fechado, quem passou a ter problemas por uso irregular da Granja Calábria para depósito de resíduos foi o próprio Pasquale Mauro. Em 1998, a Secretaria municipal de Meio Ambiente emitiu multas em nome do empresário.

Em 1999, o empresário foi processado pelo Ministério Público estadual exatamente por danos ao meio ambiente que teriam sido causados na área da Granja Calábria e em outro terreno, conhecido como Fazenda Shopping Recreio. Em 2004, foi assinado um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), prevendo algumas ações de reparo.

O caso também se desenrola até hoje. Segundo a assessoria de imprensa do MP, está marcada uma reunião para o dia 16 de julho com consultores ambientais e representantes do espólio para discutir o andamento da ações. O Departamento Jurídico do espólio disse que “conta com uma equipe técnica empenhada no cumprimento do TAC assinado, que vem desempenhando o trabalho de recuperação da área, sempre com a supervisão do Ministério Público”.

Pasquale Mauro também foi processado em 2013 pelo promotor do MP do Rio Carlos Frederico Saturnino pelo uso irregular de um terreno próximo à Granja Calábria como depósito de entulho, vindo inclusive de obras preparatórias para os Jogos Olímpicos de 2016. Uma liminar interrompeu os trabalhos, mas a análise do mérito segue em andamento na 4ª Vara Cível da Barra da Tijuca, em fase de perícia.

A escalada dos valores

Enquanto a Comlurb tentava reverter na Justiça as decisões favoráveis a Pasquale Mauro, os valores da dívida dispararam. Em 2009, a Procuradoria da Município chegou a taxar, no texto de um dos recursos, como “altamente estranho” o crescimento:

“Não se pode deixar de comentar e demonstrar a irracional e inexplicável evolução dos números quanto ao valor do ‘saneamento’ da área”.

Segundo a Procuradoria, o valor foi estimado em US$ 1,935 milhão em 1993, o que, em 2009, equivaleria a R$ 3,8 milhões. Com juros, chegaria-se a R$ 7,6 milhões. No entanto, baseado no primeiro laudo, o valor foi elevado para R$ 28,780 milhões, “isto em setembro de 2002”.

Segue a Procuradoria:

“Apesar do absurdo de tal ‘atualização’, o Agravado (Pasquale Mauro), em abril de 2005, menos de 2 anos após o último ‘laudo’, apresenta petição apontando como valor a executar a quantia de R$ 48,5 milhões e, não satisfeito, por petição de maio de 2005, ‘refaz’ a conta para R$ 53,5 milhões. Por fim, em data de Dezembro de 2008, chega à quantia de R$ 104 milhões, o que caracteriza que há algo de muito errado e altamente estranho em tais valores que se quer impingir de qualquer forma”.

Em 2019, R$ 150 milhões

O Departamento Jurídico do espólio afirmou que “toda a evolução da dívida da Comlurb consta dos autos judiciais, inclusive, já tendo passado pela análise da Contadoria Judicial”. “Tendo em vista a ausência de pagamento da condenação, por quase 20 anos, tal como ocorre em qualquer execução de julgado, esse valor é corrigido, para que incidam os juros devidos”, disse.

Segundo o espólio de Pasquale Mauro, o total da dívida chegou a mais de R$ 150 milhões no fim do ano passado, época em que foi assinado o acordo com a empresa de limpeza pública. “Vale ressaltar que o valor correspondente às dívidas fiscais quitadas pela Comlurb (R$ 91,4 milhões até agora) é bastante inferior ao montante que poderia ser executado”, acrescentou.

Caso o processo se encerre com a quitação total de todas as dívidas, a companhia de limpeza terá direito a receber uma área de 4 mil metros quadrados dentro da Granja Calábria, que possui mais de 400 mil metros quadrados. Essa era uma contrapartida prevista no contrato assinado em 1983 entre a Comlurb e o empresário italiano que, ao fazer o acordo na época, pretendia ter boa parte de seu terreno nivelado por um aterro dentro das normas ambientais.  

Propriedades questionadas

Personagem polêmico da história do Rio de Janeiro, Pasquale Mauro morreu em dezembro de 2016, aos 89 anos. Até hoje, porém, a Justiça segue analisando ações que envolvem o direito de propriedade sobre vários de seus imóveis.

“Há lentidão da Justiça, e também medidas procrastinatórias de pessoas que ajuizaram ações reivindicando imóveis que são de propriedade de Pasquale Mauro desde a década de 1960, sem que tenham qualquer título capaz de justificar tal pleito. Por isso, na tentativa de retardar o desfecho das referidas ações, no intuito, sobretudo, de forçar celebração de acordos judiciais, os autores das referidas ações seguem interpondo recursos e outras medidas processuais desnecessárias, apenas na expectativa de alcançar tal desfecho”, afirma o Departamento Jurídico do espólio.

*Foto em destaque: Lixão aberto pela Comlurb, na década de 1980, na Granja Calábria, de Pasquale Mauro / Reprodução

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