A contratação sem licitação de uma ONG acusada de irregularidades num projeto para idosos da prefeitura do Rio foi a solução encontrada pela Secretaria estadual de Educação para tentar resolver os problemas de atendimento a alunos com deficiência que frequentam as escolas da rede. A entidade, que receberá R$ 16,9 milhões por seis meses do serviço de apoio aos estudantes, é o Ibrapes (Instituto Brasileiro de Ações, Pesquisas e Estudos Sociais). Na capital fluminense, só num convênio realizado entre 2016 e 2017, uma auditoria apontou R$ 2,8 milhões de dano ao erário. O processo está em andamento no Tribunal de Contas do Município (TCM). A ONG nega qualquer “ato que desabone sua conduta” (respostas no fim do texto).
O Ibrapes, que tem sede registrada numa sala na Penha, irá substituir uma outra instituição, a Adeso (Associação para o Desenvolvimento Educacional Cultural Social e de Apoio à Inclusão, Acessibilidade e Diferença), de Sumaré (SP). Há vários meses, a entidade vinha apresentando problemas de atrasos de pagamento de salários e de repasses de encargos trabalhistas a profissionais que dão suporte a estudantes com deficiência. A ONG teve o contrato rescindido de forma unilateral e foi multada pela Subsecretaria Executiva de Educação do Estado. A Adeso afirmou que “está tomando todas as medidas extrajudiciais e judiciais cabíveis” contra a pasta (respostas da Secretaria e da ONG também ao fim do texto).
Repasses a doadores de Cristiane Brasil
O relatório sobre o convênio do Ibrapes com a prefeitura do Rio foi produzido pela Auditoria Geral – órgão da prefeitura que quantifica suspeitas de mau uso de recursos públicos – a pedido do TCM. O levantamento aponta, entre outros problemas, altas despesas não previstas em contrato e compra de materiais sem a efetiva comprovação do uso. O foco da inspeção foi o projeto Nosso Espaço, que promovia atividades de lazer para idosos em Clínicas da Família.
Para se ter uma ideia, segundo o relatório, a ONG gastou, só entre junho de 2016 e março de 2017, R$ 1,3 milhão com eventos para os participantes do projeto que não constavam nas planilhas de custo. Foram feitas contratações de ônibus, ornamentação e bandas. Visitas realizadas por técnicos do TCM em 14 clínicas onde ocorria o Nosso Espaço detectaram apenas festas simples, que tinham até a comida bancada pelos usuários.
Para tocar o projeto, o Ibrapes subcontratou uma série de empresas. Cruzando notas fiscais que constam nos documentos da auditoria com dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), o blog constatou que três delas foram doadoras ou fornecedoras de serviços de campanha da ex-secretária municipal de Envelhecimento Saudável e ex-deputada federal Cristiane Brasil (PTB), filha de Roberto Jefferson.
Somente neste convênio, foram pagos pela ONG R$ 471 mil à empresa de transporte Novo Milênio, que doou um total de R$ 76 mil às campanhas de Cristiane Brasil em 2012 e 2014. Ao menos R$ 17 mil foram do Ibrapes para a locadora de veículos Cooper Cash Car, que recebeu cerca de R$ 500 mil das campanhas da filha de Roberto Jefferson em 2008, 2012 e 2014. A Ethi S Graphic, que recebeu R$ 239 mil de campanha em 2012, foi contemplada com ao menos R$ 6 mil no projeto para os idosos.
R$ 24 milhões na prefeitura
O histórico de contratos do Ibrapes na prefeitura do Rio se confunde com a chegada de Cristiane Brasil na Secretaria de Envelhecimento Saudável. A pasta tornou-se um verdadeiro feudo da ex-deputada federal durante as duas gestões de Eduardo Paes. Quando não esteve ela própria no comando, deixou pessoas de sua confiança. Em 2016, por exemplo, era Carolina Chaves de Azevedo quem dava as cartas da política para idosos na cidade.
Dados do portal Rio Transparente mostram que a ONG recebeu da Secretaria de Envelhecimento, entre 2009 e 2016, R$ 18,4 milhões em valores liquidados (quando o serviço é completado e há o comprometimento de pagar). Em 2017, por causa principalmente da sequência do convênio assinado em 2016 alvo do TCM, foram liquidados outros R$ 5,2 milhões.
Atualmente, o Ibrapes tem na prefeitura um contrato de pequeno porte com a Secretaria de Educação. Este ano, foram repassados R$ 150 mil. Entre 2009 e 2019, foram liquidados R$ 24,2 milhões para a instituição.
Contratos para si mesmos
Não é possível saber a extensão total das subcontratações feitas em outros convênios da prefeitura do Rio com o Ibrapes já que a auditoria se concentrou apenas no contrato de 2016. Por esta amostra, porém, já é possível detectar de que formas essa terceirização era realizada.
Um dos exemplos que mais chamaram a atenção dos técnicos da auditoria foi o pagamento de R$ 843 mil para a Cooperativa de Trabalhos Responsável (CoopCTR). Jorge Antônio Oliveira Costa, que até hoje é presidente do Ibrapes, também aparece como presidente da CoopCTR em sua ata de fundação, de 2013. A CoopCTR fechou as portas no fim do ano passado.
A coincidência fica clara na comparação dos documentos. Primeiro, a ata da CoopCTR:

Agora, o contrato assinado pelo Ibrapes com a cooperativa durante o convênio para o projeto para idosos da prefeitura:

O convênio assinado pela prefeitura proibia a subcontratação de empresas com os mesmos sócios, o que levou a Auditoria Geral a questionar todos os valores repassados. O TCM ainda analisa se pede a devolução completa do dinheiro ou se será aplicada uma multa.
Atestado de qualidade
Outra curiosidade em relação ao convênio com a Secretaria de Envelhecimento Saudável foi o atestado usado para garantir a reputação do Ibrapes no processo seletivo. Ele foi assinado por Roberto Candido de Oliveira, presidente do Centro de Inclusões Sociais Canaã. Que, em seu próprio currículo, afirmou ser diretor de onde? Do próprio Ibrapes.


Fornecedoras com mesmo endereço
Mas a história não para por aí. O blog tabulou notas fiscais de empresas que prestaram serviços ao Ibrapes. Duas delas, de ramos completamente distintos, foram abertas num mesmo endereço: uma sala no Shopping Downtown, na Barra da Tijuca.
A Jubilum Produções e Eventos (que depois se mudou para Olaria) foi registrada na Receita Federal em janeiro de 2016 e foi contratada para a realização das festas dos idosos. Já a Ômega Rio Distribuidora e Comércio abriu as portas em julho daquele mesmo ano e foi contratada para fornecer lanches. A primeira recebeu um total de R$ 880 mil. A segunda, R$ 294 mil. O convênio entre Ibrapes e a Secretaria de Envelhecimento Saudável foi assinado em junho de 2016.


Sócio de empresa, representante de ONG
Entre os sócios da Ômega Rio Distribuidora e Comércio, fornecedora do Ibrapes, está, segundo o registro atual da Receita Federal, Pedro Soares de Castro Rosa. Em 2015, ele apareceu numa licitação da prefeitura do Rio como representante de outra ONG que teve, nos últimos anos, vários contratos com a Secretaria de Envelhecimento Saudável: o Cebrac (Centro Brasileiro de Ações Sociais para a Cidadania). Entre 2010 e 2016, a entidade recebeu R$ 24,8 milhões da pasta.
Por sua vez, notas fiscais que constam de uma ação trabalhista ao qual o blog teve acesso mostram que o Cebrac subcontratou, entre 2015 e 2016, a CoopCTR. Como já foi relatado na reportagem, essa cooperativa foi dirigida pelo presidente do Ibrapes, Jorge Antônio Oliveira Costa. O total foi de R$ 1,1 milhão em repasses em notas semelhantes a essa:

Com o fim da gestão de Eduardo Paes, a Secretaria de Envelhecimento Saudável permaneceu durante muito tempo extinta. Retornou, porém, na virada deste mês, após a derrubada do impeachment de Marcelo Crivella na Câmara. O escolhido para a pasta foi o vereador Felipe Michel (PSDB), que votou contra o afastamento do prefeito.
Emergência, serviço mais caro
No governo estadual, o Ibrapes foi contemplado, de forma emergencial, sem licitação, com dois contratos, publicados no dia 13 de junho em Diário Oficial. O primeiro prevê um gasto de R$ 6,980 milhões para a contratação de serviços de interpretação da Linguagem Brasileira de Sinais (Libras). O outro, R$ 9,947 milhões para o apoio a estudantes com deficiência motora ou que necessitem de algum cuidado especial para frequentar as aulas. Em ambos os casos, o prazo estipulado foi de seis meses.
O contrato para Libras com a Adeso, ONG que teve o contrato rescindido pela Secretaria de Educação, havia sido assinado em setembro do ano passado. Após um processo de licitação, foi estipulado um valor de R$ 29,86 por hora de serviço. Por um ano, foram acertadas 385.990 horas. Fazendo um cálculo simples, é possível estimar que, em seis meses, o custo seria de R$ 5,762 milhões. Ou seja, quase R$ 1 milhão a menos do que se prevê gastar na situação atual.
Já o contrato com a Adeso para o apoio a estudantes com deficiência foi assinado em junho de 2018. Previa 411.400 horas a R$ 18,05, por um ano. Em seis meses, o gasto projetado chegaria a R$ 3,712 milhões. Ou seja, com o Ibrapes está previsto quase três vezes mais: R$ 9,947 milhões.
O blog questionou a pasta sobre o valor preciso da hora com o Ibrapes, mas não obteve resposta. Profissionais que já vêm realizando os serviços dizem que a maioria está apenas sendo recontratada pela nova ONG. Eles afirmam que o período em que tiveram menos problemas foi quando foram contratados diretamente pela Secretaria de Educação, através de Recibo de Pagamento Autônomo (RPA).
Estado promete nova licitação
O blog enviou vários questionamentos para a Secretaria de Educação a respeito do Ibrapes (por que foi escolhido, de que forma, se sabia das irregularidades na prefeitura), mas a pasta se concentrou em ressaltar os problemas no serviço da ONG que teve o contrato rescindido, a Adeso.
Disse que “está em dia com todos os pagamentos e obrigações contratuais com a Adeso. Mas, pelo mau serviço prestado, diversas irregularidades, e pela não regularização dos pagamentos aos funcionários, seguindo todos os trâmites legais, a Secretaria, desde o início da atual gestão, notificou, advertiu e multou diversas vezes a entidade”.
“Afinal, os alunos com deficiência estavam sendo prejudicados porque os profissionais não estavam trabalhando, pois os seus salários não estavam em dia. Portanto, após novamente tentar buscar a renegociação com a Adeso, para que esta colocasse em dia os salários de seus profissionais, a Secretaria rescindiu o contrato no fim de maio e abriu imediatamente nova licitação para a contratação de uma prestadora de serviços”, afirmou.
“Entretanto, para que os alunos com deficiência não ficassem prejudicados sem aula, momentaneamente, a Secretaria contratou de forma emergencial a empresa citada na matéria (Ibrapes). Entretanto, vale ressaltar que este contrato é apenas temporário, pois, como já esclarecido, a pasta já abriu licitação para a contratação de uma nova prestadora de serviços, o que deve ocorrer nos próximos meses”, concluiu.
Adeso alega falta de repasses
A Adeso enviou por e-mail ao blog uma nota com sua versão dos acontecimentos que levaram à rescisão do contrato com a Secretaria de Educação. A entidade disse que irá questionar na Justiça a atitude tomada pelo estado.
“Em 14 de junho, por volta do meio-dia, a Adeso recebeu uma comunicação formal da Secretaria de Educação, informando sua decisão de rescindir, de forma unilateral, os contratos. A decisão é totalmente arbitrária e ilegal, uma vez que não respeitou a legislação que rege os contratos públicos. Diante da decisão, a instituição comunicou a dispensa de todos os funcionários e, a partir daquela data, a pasta sequer deu satisfação de quando faria os repasses à Adeso, que estão atrasados desde o mês de março de 2019, pelos serviços já efetivamente prestados, para que sejam pagas as pendências financeiras aos funcionários”, afirmou.
A ONG disse ainda que “contestou todos os pontos indicados pela Secretaria em suas notificações e está corrigindo possíveis falhas que supostamente estavam ocorrendo na execução contratual”.
A instituição também fez críticas à contratação do Ibrapes:
“Mesmo a Adeso trabalhando para aprimorar o atendimento aos alunos, é de se estranhar que a Secretaria contratou outra empresa, de forma emergencial, pagando o dobro do preço praticado até então. Ora, se a pasta não tem recursos financeiros para pagar a Adeso, de que forma pagará outra empresa que cobra o dobro do preço?”
A entidade ainda questionou a experiência do Ibrapes no atendimento a crianças e adolescentes com deficiência e afirmou que “está tomando todas as medidas extrajudiciais e judiciais cabíveis contra a Secretaria de Educação para garantir os direitos dos funcionários que, incansavelmente, trabalharam para atender aos alunos nas unidades escolares do Estado do Rio de Janeiro”.
Com a palavra, o Ibrapes
Por fim, o blog reproduz as principais considerações enviadas pelo Ibrapes, por e-mail, sobre os pontos levantados na reportagem:
Falta de experiência no trabalho com alunos com deficiência: O Ibrapes afirmou que “executou ações de um convênio em 2017 no âmbito da Subsecretaria de Pessoa com Deficiência, da Prefeitura do Rio, além de experiências próprias com pessoas com deficiência que atendemos nas comunidades da Penha, bairro onde estamos sediados e no qual atuamos há anos, motivo pelo qual entendemos que estamos aptos a gerenciar serviços com tal escopo”.
Irregularidades apontadas no projeto para idosos da prefeitura do Rio: “Os relatórios da Auditoria Geral e do TCM sobre o Projeto Nosso Espaço já foram objeto de resposta e apresentação das contrarrazões do Ibrapes. Buscamos demonstrar a estes órgãos de controle que todas as entregas do projeto foram devidamente realizadas, aceitas pela administração à época. Portanto, discordamos do entendimento dos técnicos que apontaram a existência de danos ao erário. Os eventos realizados com a devida autorização da Secretaria contratante em nada guardaram relação com as festas realizadas pelos próprios usuários. Uma análise mais cuidadosa do relatório elucida com facilidade essa confusão. Essas e outras argumentações que demonstram não ter ocorrido tais situações apontadas por técnicos estão em analise pelos respectivos órgãos”.
Contratação da cooperativa CoopCTR, dirigida pelo presidente do próprio Ibrapes: “O Presidente do Ibrapes foi um dos fundadores da cooperativa em questão, mas nunca recebeu 1 centavo sequer, nem a título de pró labore, oriundo do projeto. Nem ele nem outros membros, todos moradores da mesma região da Penha e que sempre atuaram em instâncias sociais locais que buscam a melhoria da qualidade de vida dos moradores das comunidades do bairro. Todos os gastos da cooperativa foram integralmente apresentados no âmbito das prestações de contas, e a Auditoria Geral e o TCM não encontraram qualquer evidência de recebimento deles nesse caso, o que afasta de pronto a tese de dano ao erário. A lisura com o dinheiro público está inequivocamente comprovada nas prestações de contas. Quanto à formalidade de vedação da subcontratação, quando a mesma foi identificada, o Ibrapes procedeu imediatamente às providências para cessar a situação, o que também foi informado aos órgãos de controle da prefeitura”.
Contratação de empresas que doaram para Cristiane Brasil: “A contratação de fornecedores e prestadores de serviços nunca sofreu, não sofre e nem nunca sofrerá ingerência política de nenhuma espécie no âmbito da atuação do Ibrapes”.
Contratação de empresas abertas no mesmo endereço (Jubilum e Ômega Rio) em datas próximas do início do convênio com a prefeitura: “O Ibrapes conhece há anos ambas as empresas, cada qual em seu ramo específico de atividade, funcionando até a presente data de forma regular. Todas as entregas contratadas de ambas foram rigorosamente acompanhadas não somente pelo Ibrapes mas principalmente pela Secretaria à época”.
Relação entre Cebrac e Ibrapes: “Os convênios previam em seus respectivos planos de trabalho a contratação de parte da mão de obra (‘oficineiros’) através de cooperativa, por conta da natureza do serviço que estes prestavam, que era diferente da natureza dos outros profissionais dos projetos – que eram celetistas. As remunerações e os encargos incidentes relativos aos cooperados eram fixados pela própria Secretaria, não havendo taxa de administração ou qualquer pró labore diferenciado à cooperativa. Ou seja, sendo os preços fixos, qualquer cooperativa que possuísse tais profissionais e os gerenciasse de forma correta era apta a ser convidada pelas instituições à prestação dos serviços. Agora, tenha também em mente que o Ibrapes, o Cebrac e a CoopCTR são oriundos da mesma região do Rio, a Penha, e por anos colaboram e cooperam entre si em muitas outras ações. Não há qualquer vedação legal por nós conhecida que impeça as cooperações mútuas entre tais organizações, sempre respeitadas as condições particulares de cada contratação”.
Nota do blog: Apesar da afirmação do Ibrapes de que “oficineiros” (profissionais que faziam as oficinas de atividades com os idosos) eram os que recebiam por cooperativa, em ação trabalhista que corre na 1ª Vara do Trabalho de Queimados, um motorista afirma ter sido contratado pela CoopCTR. Ele cobra direitos trabalhistas não pagos e já conseguiu decisão favorável em primeira instância.
Foto em destaque: Fachada do prédio onde fica a sede do Ibrapes, ao lado da estação de BRT da Penha / Crédito: Ruben Berta