Na mais otimista das contas, a prefeitura do Rio desperdiçou R$ 5.133.337 ao realizar a compra de 466.667 aventais hospitalares descartáveis, também conhecidos como capotes, para profissionais que estão na linha de frente do combate ao coronavírus nas unidades de Saúde da cidade. E mais: são equipamentos de proteção que, ao menos em parte, tiveram a qualidade questionada pelo próprio município.
Com base em documentos fornecidos pelo gabinete da vereadora Teresa Bergher (Cidadania), o blog identificou que o material adquirido pela Secretaria municipal de Saúde teve como origem principal a empresa MDias Comércio de Produtos Hospitalares, com sede em Palhoça (SC). No entanto, os aventais foram comprados pela prefeitura da Terral Trading Comércio Exterior LTDA, que fica num escritório na Rua México, no Centro do Rio.
A Terral Trading pertence a um integrante de uma das famílias mais tradicionais da high society carioca, os Marcondes Ferraz. O dono da companhia é o jovem economista João Pedro Marcondes Ferraz Fabbriani.
Ao adquirir de um atravessador, o município deixou de economizar, no mínimo, R$ 11 por cada capote. Na sexta (3), a reportagem entrou em contato com o dono da MDias, Robson Schmitt Machado, que afirmou que, nos últimos meses, já na pandemia, vendeu o produto por valores que variam entre R$ 7,50 e R$ 16 a unidade. A Terral Trading, por sua vez, repassou para a prefeitura por R$ 27.
“O que posso te falar é que os produtos que nós comercializamos variam de R$ 7,50 a R$ 13,90, R$ 14. Tem uma linha só, na época em que estava com escassez de mercadoria, que vendemos a R$ 16”, afirmou Robson, que confirmou que fez várias vendas diretas a entes públicos por valores nessa faixa de preço. “Fizemos para a prefeitura de Vitória, prefeituras de São Paulo, Votorantim, Boticário… Na verdade, vendemos algo em torno de 4 milhões de aventais nos últimos 3, 4 meses”.
A Secretaria municipal de Saúde alegou (íntegra no fim do texto) que a MDias “não apresentou propostas para a convocação pública de pesquisa de mercado para o fornecimento do produto”. “Por isso, a pasta não poderia ter adquirido qualquer produto da empresa”.
Mas o fato é que adquiriu. Apenas pagou mais caro a um atravessador.
Em Vitória, R$ 13,70
Sem licitação, com base na lei federal que flexibilizou as compras durante a pandemia, a Secretaria municipal de Saúde do Rio realizou em abril o pagamento completo dos 466.667 capotes para a Terral Trading: R$ 12.600.009. Cada um a R$ 27. Ou seja, se tivesse comprado diretamente da MDias, pelo preço mais caro da empresa catarinense, teria pago R$ 16. E economizado R$ 5.133.337.
A título de exemplo, a prefeitura de Vitória (ES) adquiriu, também por dispensa de licitação, agora em junho, 65 mil aventais da MDias, semelhantes aos do Rio, por R$ 13,70 cada. O valor final ficou em R$ 890,5 mil.
No caso do Rio de Janeiro, pelo que consta nos documentos da prefeitura, o material teria saído originalmente da MDias e depois passado por outra empresa também de Santa Catarina, a One Brasil Importação e Exportação. Por fim, foi revendido pela Terral Trading ao município pelo valor mais alto.
Qualidade em xeque
O preço caro, porém, não é a única questão envolvendo os aventais vendidos pela Terral Trading. No dia 26 de junho, com base na apuração de um processo administrativo, foi publicado um despacho para que a empresa dê explicações a respeito de problemas na qualidade do produto oferecido à prefeitura.
A situação é grave porque foram detectados alguns lotes com aventais que tiveram a impermeabilidade posta em dúvida. Logo, os capotes poderiam deixar os profissionais de Saúde mais expostos ao contágio pelo novo coronavírus.
Em letras garrafais, o documento assinado pela coordenadora de Ciência, Tecnologia e Inovação em Saúde da Secretaria municipal de Saúde, Tatiana Nascimento, afirma que o material não atende a especificações técnicas previstas e nem “às exigências aplicáveis ao controle sanitário”.

“Excremento de animais”
O processo que embasou o despacho da coordenadora mostra que foram detectados problemas na chegada de todos os seis lotes dos aventais no Centro de Logística da prefeitura, em Jacarepaguá.
Transporte em sacos plásticos “sem qualquer padrão de qualidade”, modelos de cores variadas – a prefeitura comprou apenas brancos – e até “caixas rasgadas e com excremento de animais” foram relatados.

Técnicos de ao menos quatro áreas de planejamento de Saúde também detectaram problemas na ponta, nos aventais que chegavam às unidades.
O principal defeito verificado em alguns lotes foi que os capotes não apresentavam eficiência nos testes com respingos d´água, o que colocou em xeque a impermeabilidade do material.
Outro ponto que despertou desconfiança foi o fato de que alguns aventais com defeito estavam com a etiqueta de outras marcas que não a MDias, informada pela Terral Trading à prefeitura como a fabricante original dos produtos. Foram encontrados lotes que teriam sido produzidos por outras 19 empresas. Entre elas, nomes como Naxos Confecções, Toda Santa Confecções, Visual Bordados e Adriana Confecções.
Atestado dos produtos
Numa primeira defesa apresentada à Secretaria de Saúde – que foi rejeitada -, a Terral Trading usou um atestado da MDias para ratificar a qualidade dos produtos que ofereceu ao município:

O dono da MDias, Robson Schmitt Machado, confirmou ao blog que enviou um atestado padrão para a empresa One Brasil. Essa companhia foi a que repassou o material para a Terral Trading, que, por sua vez, vendeu para a prefeitura.
Robson disse, porém, não ter como se responsabilizar por aventais de outras empresas que eventualmente tenham chegado ao município do Rio.
Com ou sem teste?
Também na defesa inicial, que foi rejeitada, a Terral Trading afirmou que, em abril, levou amostras dos capotes para o Centro de Controle de Infecção Hospitalar da Secretaria municipal de Saúde. Segundo a empresa, o material passou pelo teste de impermeabilidade.
A companhia afirmou ainda, no processo administrativo, que, também em abril, uma funcionária da prefeitura, a enfermeira Danielle Nunes de Oliveira Souza Sevilha, foi a Itajaí (SC) e aprovou o produto “após minuciosa análise”.
Mas a assessoria de imprensa da pasta deu ao blog uma resposta conflitante: “Não houve teste prévio porque não é previsto no termo de referência da contratação. Mas a empresa contratada é obrigada a fornecer o EPI (Equipamento de Proteção Individual) exatamente de acordo com as especificações técnicas exigidas no termo de referência”.
Marcondes Ferraz
O ramo de fornecimento de material hospitalar, ao menos para o Poder Público, parece ser algo raro para a Terral Trading. Além da venda para a prefeitura do Rio, o blog localizou apenas mais uma, em maio, no valor total de R$ 288,6 mil, para o Hospital Cardoso Fontes, da rede federal. O negócio também foi realizado com dispensa de licitação, com base na lei que flexibilizou as compras durante a pandemia de coronavírus.
Fundada em novembro de 2016, a Terral Trading Comércio Exterior possui atualmente um capital social de R$ 200 mil e pertence ao economista João Pedro Marcondes Ferraz Fabbriani. Sua atividade principal é “comércio atacadista de mercadorias em geral, com predominância de produtos alimentícios”.
O dono da empresa possui ainda outras duas companhias, que estão registradas no mesmo endereço, na Rua México, no Centro do Rio: a Terral Capital Participações e a Trocka Correspondente Cambial.
Ao que aparenta na página do Linkedin de João Pedro, sua atividade principal seria o comando da Trocka. Ele se diz CEO e fundador da companhia que vem “transformando o jeito de fazer câmbio”.
Parente na Lava Jato
O economista faz parte do clã dos Marcondes Ferraz, uma das mais tradicionais famílias da elite carioca, que viu recentemente um de seus membros envolvidos em suspeitas de corrupção. Em 2017, o empresário Mariano Marcondes Ferraz se tornou réu na Justiça Federal de Curitiba por corrupção e lavagem de dinheiro.
No fim do ano passado, desembargadores do Tribunal Regional Federal da 4ª Região confirmaram a condenação de 9 anos e 7 meses de prisão. A acusação é de pagamento de propina de pelo menos US$ 868 mil ao ex-diretor da Petrobras Paulo Roberto Costa. Mariano ainda recorre da decisão.
O pai de Mariano, o empresário Paulo Fernando Marcondes Ferraz, foi um dos que estiveram na festa realizada pelo prefeito do Rio, Marcelo Crivella, após a vitória nas eleições de 2016, num hotel na Barra da Tijuca.
Vereadora pede investigação
Além da Terral Trading, a prefeitura do Rio também comprou ao preço unitário de R$ 27 os aventais da empresa Preciosa Distribuidora de Produtos Hospitalares, indicando que o desperdício de dinheiro público pode ter sido ainda maior. Neste caso, foram entregues 138 mil unidades, e o valor total pago foi de R$ 3.726.000.
A vereadora Teresa Bergher afirmou que irá entrar com uma representação no Ministério Público pedindo para que a compra com a Terral Trading seja investigada:
“Estamos atravessando uma pandemia há quatro meses sem que a prefeitura do Rio consiga sequer comprar o equipamento de proteção adequado para os profissionais da Saúde. Quantos enfermeiros não se contaminaram por culpa dessa irresponsabilidade? Isso é duplamente criminoso, porque houve desleixo com dinheiro público e, pior, botando em risco a vida dos profissionais”.
O que diz a prefeitura
O blog tentou contato por telefone e por e-mail com a Terral Trading, sem sucesso. A reportagem também não conseguiu falar com a One Brasil. O espaço segue aberto para esclarecimentos.
Confira a íntegra das perguntas com as respostas da Secretaria municipal de Saúde:
A prefeitura fará algum movimento no sentido de punição da empresa Terral Trading ou de retorno no dinheiro já pago (mais de R$ 12 milhões) pelos defeitos detectados no material entregue?
- É importante salientar que a notificação para a empresa Terral é referente a uma parte dos aventais (capotes) que foram fornecidos pela empresa contratada, e não à totalidade do produto. Qualquer punição depende do encerramento da fase da ampla defesa da empresa. Essa punição, se aplicada, será a prevista em Lei, inclusive, podendo o município requerer o ressarcimento de valores, correspondendo esse ressarcimento aos itens entregues em desconformidade com as normas sanitárias.
Que defeitos exatamente foram encontrados nos aventais e a que tipo de risco os profissionais de saúde foram expostos?
- Alguns capotes tinham gramaturas diferentes daquela exigida no termo de referência, incompatível, ainda, com a informada pela própria empresa na sua proposta comercial. Além do mais, não observaram normas sanitárias.
Por que a secretaria pagou a íntegra do contrato? Não houve testes prévios que pudessem comprovar a ineficácia do produto?
- O pagamento na integralidade deveu-se ao fato de que, na época, início da pandemia, a secretaria se encontrava com estoques insuficientes — uma realidade vista em unidades de saúde de todo o país — para atender a demanda das unidades de saúde ocasionada pela Covid-19. Assim, em razão de exigência da proposta comercial, um dos únicos fornecedores que se comprometeram a entregar prontamente o material foi a Terral. Não houve teste prévio porque não é previsto no termo de referência da contratação. Mas a empresa contratada é obrigada a fornecer o EPI exatamente de acordo com as especificações técnicas exigidas no termo de referência.
Os produtos com defeito pararam de ser usados? Se sim, quando?
- Sim, após a identificação do problema.
A Terral Trading apresentou algum certificado técnico ou de garantia do material que entregou?
- Sim, a empresa apresentou certificado técnico do produto fornecido.
Por que a secretaria não fez a compra direta com a empresa MDias?
- A empresa não apresentou propostas para a convocação pública de pesquisa de mercado para o fornecimento do produto. Por isso, a secretaria não poderia ter adquirido qualquer produto da Mdias.
Quais outras empresas participaram da pesquisa da dispensa de licitação vencida pela Terral Trading?
- O processo de aquisição de EPIs, incluindo o avental (tipo capote) em questão, foi objeto de convocação em Diário Oficial para ampla pesquisa de mercado, tendo sido ainda encaminhadas correspondências eletrônicas para mais de 100 empresas do segmento, as quais fazem parte de cadastro de fornecedores da secretaria. Oito empresas apresentaram cotação de preços do avental.
*Foto em destaque: Imagem de campanha da prefeitura do Rio contra o coronavírus / Divulgação