Sem que nenhum dos 500 respiradores importados que deveriam ter sido usados pela Organização Social Iabas nos hospitais de campanha do Estado do Rio tenha sequer sido ligado na tomada, uma empresa com sede em Brasília embolsou mais de R$ 8,6 milhões, de forma antecipada, apenas por um serviço de consultoria na compra dos equipamentos.
Documentos localizados pelo blog no Sistema Eletrônico de Informações (SEI), do governo estadual, mostram que a OS realizou dois pagamentos, nos dias 14 e 15 de abril, para a Enacon Engenharia de Automação, Comércio e Consultoria, pela assessoria na aquisição dos ventiladores pulmonares. Na prática, porém, o nebuloso serviço não foi feito nem pela metade, e agora a entidade tenta cobrar extrajudicialmente parte dos valores já repassados.
Para se ter uma ideia, a Enacon cobrou, em 14 de abril, US$ 4 mil por cada respirador de um primeiro lote de 315 equipamentos chineses que o Iabas encomendou para os hospitais de campanha. Reforçando: isso foi só por uma assessoria. Na realidade, as máquinas foram compradas na China por outra empresa, a Hichens Harrison & Co. O preço acordado dos respiradores em si variou entre US$ 15 mil (sem frete) e US$ 20 mil (com frete).
O quadro atual é o seguinte: a Hichens, que efetivamente fez a compra, entrou esta semana com uma ação na Justiça do Rio contra o Iabas para cobrar a metade ainda não paga das máquinas adquiridas na China – ao todo, foram 400. E a OS, por sua vez, tenta reaver extrajudicialmente da Enacon valores pagos antecipadamente por serviços da tal assessoria, relativos a equipamentos que não teriam chegado.
No início da noite desta quarta (1), após a reportagem entrar em contato com um escritório de contabilidade que atende a Enacon, um funcionário da empresa, que se identificou como Donizeti, disse que a dona da companhia, Andrea Alencar Velloso, entraria em contato, mas isso não ocorreu até a publicação. O espaço segue aberto.
R$ 2,8 milhões sem volta
Sem documentos públicos que possam efetivamente esclarecer todos os detalhes, as compras dos respiradores importados pelo Iabas formam um quebra-cabeças com peças difíceis de serem encaixadas.
Em uma das notificações encaminhadas pelo Iabas à Enacon, em 23 de junho, é possível constatar que R$ 2,8 milhões pagos pela OS à empresa não estão sendo questionados. Ou seja, saíram dos cofres do estado para a Organização Social, de lá para a consultoria, e não têm qualquer perspectiva de voltar.
Esse valor é referente a uma cobrança de US$ 4 mil de assessoria por cada um dos 135 equipamentos que foram efetivamente comprados por outra empresa, a Hichens, e trazidos num voo fretado pelo Iabas da China ao Galeão.
Pelo que a OS informa, as funções da Enacon teriam sido “assessoramento, consultoria e intermediação na área de engenharia junto ao fabricante na China” e “escolha de equipamentos e acessórios, especificações técnicas, negociação de prazo de entrega, formalização de invoice, vistoria, testes e acompanhamento de instalação dos ventiladores pulmonares”.
O diretor da Hichens Fabiano Kempfer afirmou que a companhia é representante exclusiva para o Brasil junto ao fabricante chinês dos respiradores. Ele também disse que é a Hichens a responsável pela instalação dos equipamentos e treinamento dos profissionais que forem utilizá-los.
“Inexiste relação da Hichens com eventuais valores pagos pelo pelo Iabas à empresa Enacon, que atuou como consultor/agente de compras do Iabas junto a Hichens, representando ambas as partes na negociação. A venda foi efetuada pela Hichens diretamente ao Iabas e dele recebeu pagamento direto, sem nenhuma intermediação financeira”, acrescentou a companhia em nota.
E mais dinheiro
Além dos R$ 2,8 milhões não questionados, o Iabas pagou integralmente outros R$ 3,7 milhões à Enacon pela assessoria na compra por parte da Hichens de outras 180 máquinas que até hoje não chegaram ao Rio. Este valor a OS agora está pedindo de volta extrajudicialmente.
Mas a história não para por aí.
O Iabas ainda pagou, no dia 15 de abril, R$ 2,1 milhões adiantados para a Enacon pela assessoria na compra de outros 100 equipamentos que seriam adquiridos por uma outra empresa: a Royal Zhuhai Exportadora de Alimentos.
Criada em novembro do ano passado, com capital social de R$ 10 mil, a companhia, com sede em São Paulo, mudou radicalmente os rumos depois do negócio com o Iabas. Em 23 de abril, passou a se chamar Royal Zhuhai Comércio e Distribuição de Produtos Hospitalares. Com capital social de R$ 1 milhão.
À Royal Zhuhai, o Iabas pagou, em 14 de abril, R$ 4,4 milhões.
Neste caso, os R$ 6,5 milhões pagos pela Organização Social às duas empresas corresponderiam à metade do valor total dos custos envolvidos na aquisição dos respiradores.
Em notificação extrajudicial enviada em 23 de junho, a OS afirma que nenhum equipamento havia chegado e pedia para que o dinheiro pago para a Royal Zhuhai e para a Enacon fosse devolvido.
O blog tentou entrar em contato por e-mail com a Royal Zhuhai, sem sucesso.
Equipamentos no aeroporto
No meio de tanto desperdício de dinheiro público – não custa lembrar que os recursos pagos pelo Iabas vêm dos cofres do estado – nenhum dos equipamentos importados adquiridos pela Organização Social está em funcionamento.
Atualmente, há 135 respiradores vendidos pela Hichens parados no Galeão. O mesmo acontece com outros 100 que a OS disse que chegaram ao Rio, mas não informou ao blog de quem foram comprados.
Em ambos os casos, as máquinas estão retidas porque há uma divergência entre o governo do Rio e o Iabas a respeito de quem deveria arcar com o custo do imposto estadual para a liberação dos equipamentos.
Dívida de R$ 17 milhões
Fora isso, ainda há outros 265 respiradores que a Hichens comprou junto à fabricante na China, que estão parados no país asiático à espera de que o Iabas pague os 50% que faltam para a quitação dos equipamentos.
De acordo com a Hichens, a dívida atual, que começou a ser cobrada na Justiça do Iabas, está em cerca de R$ 17,5 milhões. Este valor é referente à metade ainda não quitada do total de 400 respiradores que a empresa vendeu para a OS.
Enquanto isso, o estado já admite que os equipamentos podem nem ser usados para pacientes com a Covid-19 quando forem liberados. Em nota, a Secretaria estadual de Saúde informou que as máquinas compradas pelo Iabas, com recursos públicos, serão distribuídas para municípios.
Apenas “em caso de nova onda do coronavírus, se for necessário, os aparelhos serão empregados, embora eles não sejam do modelo mais indicado para o atendimento dos pacientes com a Covid-19”, afirmou a pasta.
Máquinas de anestesia
As máquinas do modelo fornecido pela Hichens começaram a ter a eficácia questionada pelo ex-secretário de Saúde Fernando Ferry, que deixou o cargo no dia 22 de junho. Ele chegou a dizer que, após consultar amigos médicos, detectou que os equipamentos – que são originalmente aparelhos de anestesia – não serviriam para o tratamento de pacientes com a Covid-19. O Iabas, no entanto, já havia informado desde abril sobre a compra deste modelo ao estado.
O diretor da Hichens Fabiano Kempfer disse que os equipamentos possuem laudos técnicos que comprovam a sua eficácia e que vêm sendo usados com sucesso em São Paulo e nos Estados Unidos, mais especificamente na Califórnia e em Nova York.
Ele teme, porém, que, caso os respiradores sejam enviados aos municípios de forma inadequada, possa haver problemas:
“Nós oferecemos também na venda a instalação e o treinamento dos profissionais. Tentamos contato com o governador e com o ex-secretário (Ferry), mas não obtivemos sucesso. É preciso que os equipamentos sejam corretamente instalados e calibrados para que funcionem de maneira adequada”.
Investigação em SP
A outra venda realizada durante a pandemia pela Hichens no Brasil, para o governo do Estado de São Paulo, está na berlinda. Há investigações em andamento por parte do Ministério Público e do Tribunal de Contas do Estado já que a empresa recebeu R$ 242 milhões de forma antecipada, mas não conseguiu cumprir o prazo de entrega.
O contrato foi suspenso pelo governador João Doria, que também anunciou que iria multar a empresa. A Hichens informou, porém, que conseguiu um mandado de segurança na Justiça que permitiu que fosse realizada a entrega de 1.280 máquinas, número correspondente ao valor já recebido. A empresa espera concluir o envio de todos os equipamentos até o fim da semana que vem.
O que diz o Iabas
O blog fez uma série de questionamentos à assessoria de imprensa do Iabas, que respondeu com uma nota que não esclarece detalhes sobre a compra dos respiradores.
A OS defendeu o modelo de máquina de anestesia comprado dizendo que tem a aprovação de entidades como a Associação Médica Brasileira para o uso em pacientes com a Covid-19 e ressaltou que “a compra foi feita em anuência com o estado”.
A entidade ainda afirmou que foram adquiridos “500 respiradores da empresa Shenzhen Comen Medical (fabricante chinesa)”. O Iabas, porém, não esclareceu de quem foram comprados os 100 que não foram vendidos pela Hichens, que é fornecedora exclusiva no Brasil.
“O Iabas esclarece ainda que todos os respiradores adquiridos estão dentro do preço de mercado e que, diante da pandemia, sistemas de saúde do mundo inteiro estão em busca desses equipamentos, o que leva à escassez do produto e, consequentemente, oscilação e aumento de preços.
Diante disso, era exigido o pagamento antecipado de 50%. Com a intervenção e a suspensão dos repasses, o Iabas não pôde concluir o pagamento da segunda parcela e, consequentemente, foi interrompido o fluxo de envio dos equipamentos. Desta forma, o valor que seria referente a 50% foi utilizado para liquidar o pagamento dos 235 equipamentos entregues e o Iabas solicitou que fosse devolvido o valor restante”.
O instituto não esclareceu por que pagou 100% antecipadamente pela assessoria da Enacon na compra de 315 respiradores feita pela Hichens.
Intervenção
O Iabas foi contratado para a implementação dos hospitais de campanha do Rio por um valor inicial de mais de R$ 850 milhões. O contrato foi revisto e ficou em cerca de R$ 770 milhões para a implementação de 1.300 leitos em sete unidades.
Até agora, porém, apenas dois hospitais foram entregues, o do Maracanã e o de São Gonçalo. Conforme mostrou o blog, os respiradores que vêm sendo usados pela entidade são em sua maioria de segunda mão, já que até hoje os novos da China não foram liberados.
Alvo de investigação do Ministério Público, a Organização Social teve a gestão das unidades suspensa pelo governo estadual, que interveio na administração, através da Fundação Saúde. Dois dos sete hospitais que não ficaram prontos – Campos e Casimiro de Abreu – foram definitivamente abortados pela Secretaria estadual de Saúde. Até agora, foram repassados R$ 256 milhões para o Iabas, cujos gastos também são objeto de análise no Tribunal de Contas.
*Foto em destaque: Respiradores do modelo comprado pelo Iabas para os hospitais de campanha do Rio / Divulgação
Em suma, o vírus da corrupção de braços dados com o coronavírus. Foi sempre assim enquanto uns morrem e outros choram, uns poucos se enriquecem. Está certo. Isto é capitalismo, ganhar mais com menor esforço, o princípio da mais valia. No meu romance Noite em Paris que publico no blogue noite-em-paris se aborda este tema. Que fazer? Deixar assim? Definitivamente a justiça não resolverá este problema, daí o grande engodo da denominada Lava Jato.