Ambulâncias do Samu

Empresa do Samu-RJ apresentou garantia de R$ 166 milhões assinada por beneficiário do auxílio emergencial

Na tentativa de voltar a receber recursos do governo do Estado do Rio, a empresa OZZ Saúde, que administra o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) na capital, apresentou à Justiça uma carta fiança de R$ 166,5 milhões assinada por um jovem de 27 anos que está na lista dos beneficiários do auxílio emergencial de R$ 600 concedido pelo governo federal durante a pandemia.

Desde o fim de maio, a OZZ Saúde é ré em ação de improbidade administrativa por suspeitas de irregularidades envolvendo o contrato de gestão do Samu, assinado pelo ex-subsecretário estadual de Saúde Gabriell Neves, que está preso. A pedido do Ministério Público, a juíza Regina Lucia Chuquer, da 6ª Vara de Fazenda Pública, concedeu liminar determinando que o estado suspendesse os repasses à empresa.

Nesse contexto, a OZZ Saúde apresentou uma carta, de 2 de junho, da Montecristo Fiança LTDA – nome fantasia Montecristo Bank S.A -, que serviria como uma garantia caso a empresa se torne insolvente. O valor de R$ 166,5 milhões equivale ao total do contrato de seis meses que a companhia assinou para gerir o Samu.

O documento da desconhecida Montecristo gerou desconfiança por parte dos promotores. E, nos últimos dias, o blog realizou uma apuração que reforça as suspeitas. A cereja do bolo é o fato de Ronaldo Costa do Nascimento, que detém a metade de um impressionante capital social de R$ 900 milhões declarado pela empresa na Junta Comercial de São Paulo, estar entre os beneficiários do auxílio emergencial da União.

Segundo o site da Caixa, o sócio do Montecristo Bank consta no Cadastro Único do governo federal, que reúne famílias com renda de até meio salário mínimo por pessoa ou três salários mínimos de renda mensal total.

Abaixo, trechos da carta fiança assinada eletronicamente por Ronaldo e a tela que aparece após a inserção dos seus dados na consulta do auxílio emergencial:

De R$ 50 mil para R$ 900 milhões

Mas esse não é o único fato curioso envolvendo o Montecristo Bank. Documentos acessados pela reportagem na Junta Comercial de São Paulo mostram que, até novembro do ano passado, a empresa tinha outro nome: Rogério Cristiano Costa Representação Comercial LTDA, com foco principal em eventos. A sede era no Mato Grosso do Sul, o dono era o próprio Rogério, e o capital social, de apenas R$ 50 mil.

Entre novembro e dezembro de 2019, deu-se o milagre da multiplicação na companhia. Houve a mudança do nome para Montecristo Fiança LTDA, a sede passou a ser na capital paulista, e o capital social simplesmente disparou para R$ 900 milhões.

Os dois sócios – cada um com metade da participação – passaram a ser Ronaldo Costa do Nascimento e Edson Cerone. A atividade principal: “consultoria em gestão empresarial, exceto consultoria técnica específica”.

Para justificar tamanho aumento no capital, foi apresentada uma Letra do Tesouro Nacional (LTN), em nome de Ubiratan Salgado Figueiredo Neto.

Este mesmo nome aparece numa ação penal que corre desde 2015 no Tribunal Regional Federal da 3ª Região. Segundo um documento de abril do ano passado, na apuração da falsidade de uma LTN, “a Delegacia de Polícia Federal de Anápolis (GO) concluiu pela inexistência da pessoa de Ubiratan Salgado Figueiredo Neto, em razão da inexistência do endereço, telefones e de seu registro tardio no Cadastro de Pessoa Física”.

R$ 1,5 milhão por carta

As suspeitas levantadas pelo MP em cima da carta fiança do Montecristo Bank foram rechaçadas com veemência pelos advogados da OZZ Saúde na ação de improbidade que corre na 6ª Vara de Fazenda Pública.

A carta foi utilizada pela OZZ como uma tentativa de dar uma garantia econômica que ajudasse a viabilizar a liberação de recursos por parte do estado. O MP questiona no processo o fato de a empresa ter assinado o contrato de R$ 166,5 milhões para a gestão do Samu, apesar de ser uma companhia de apenas um sócio, Sérgio Esteliodoro Pozzetti, e de ter um capital social de somente R$ 10 milhões.

A OZZ afirmou então que o Montecristo seria um garantidor idôneo, pois tem um “vasto histórico de emissão de cartas fiança em processos judiciais, sem nenhum questionamento quanto à sua solvência”. Disse ainda que, para adquirir o documento “teve de submeter extensa documentação à análise da emissora (atos constitutivos, balanços, contratos vigentes e até mesmo extratos bancários), além de pagar a nada trivial quantia de 1,5 milhão de reais”.

Diálogo 1

Para tentar conseguir mais informações sobre os sócios do Montecristo Bank e sobre a carta fiança emitida para a OZZ, o blog ligou duas vezes para o telefone que aparece no site da empresa, na quarta (8) e na quinta (9).

O primeiro dialogo foi com uma mulher que não se identificou. A reportagem procurou inicialmente por Edson Cerone, que consta tanto na Receita Federal quanto na Junta Comercial de São Paulo como sócio da empresa.

“Sou jornalista, estou fazendo uma reportagem a respeito da empresa…”

“Ahn… Mas o Edson Cerone na verdade não está mais na empresa.”

“Mas ele é o sócio que aparece na Receita Federal…”

“Sim, ele é o sócio que aparece na Receita Federal, mas não faz mais parte da empresa, não. E sobre o que seria? O que você quer saber sobre a empresa?”

“É porque a empresa fez uma carta para outra que tem um contrato público aqui no Rio de Janeiro. Eu estava querendo entender mais sobre a Montecristo porque até outro dia o CNPJ era de uma empresa de eventos, aí se transformou num banco… Queria entender como funcionou isso.”

“Ahn, entendi… Mas qual é a empresa que foi feita a carta fiança que você está falando?”

“OZZ Saúde.”

“Hum… Entendi. É, não vou saber te falar no momento sobre isso, não. Mas engraçado, você é jornalista e liga para uma empresa querendo saber alguma coisa?”

“Sim, sim, se envolve dinheiro público, a gente liga.”

“É… Mas eu acho que não é o correto. Você tem que falar então com o advogado da empresa, né? Com o setor jurídico.”

“Se você me passar o contato, eu ligo.”

“Infelizmente, não posso passar.”

Diálogo 2

Na segunda tentativa, no dia seguinte, uma mulher com a mesma voz atendeu o telefone, mas logo passou para uma outra pessoa, que se identificou como “Cristiano Costa, diretor comercial do Montecristo Bank”.

“Em primeiro lugar, eu estou procurando o Edson Cerone e o Ronaldo Costa, que são os sócios da empresa.”

“Certo.”

“Eu vi que a empresa tem um capital de 900 milhões de reais e o Ronaldo Costa recebeu auxílio emergencial do governo federal.”

“Certo.”

“É normal isso?”

“Não, normal não é, né?”

“E qual a explicação que a gente dá para isso?”

“Tá, faz o seguinte, você consegue me mandar por e-mail, para mim, por gentileza, todas as suas necessidades.”

“Mas vocês fizeram carta fiança para a OZZ?”

“Não foi ‘aceite’. Tentamos fazer a fiança e…”

“Mas a empresa disse que pagou R$ 1,5 milhão para vocês.”

“Só que não foi ‘aceite’, não. A empresa está falando que pagou, você tá sabendo que foi pago? Me manda por e-mail para mim, tem possibilidade?”

“Não receberam, não”

Após o diretor ter passado o endereço do e-mail, a conversa continuou. Ele rebateu inicialmente a afirmação de que Ronaldo Costa recebeu auxílio emergencial, mas em seguida disse que ia “ver isso agora para você porque não estou sabendo, não”. E perguntou:

“Você quer investigar a nossa empresa ou a outra empresa lá?”

“Era a outra empresa, mas acabou que foi a sua porque eles informaram na Justiça que pegaram uma carta fiança de vocês.”

“É, mas não receberam, não. Estou falando sinceramente com você, se você quiser consultar dentro do processo, eu até te ajudo referente a…”

“Mas eles anexaram a carta fiança de vocês. Está no processo. O Ministério Público questionou, eles disseram que pagaram R$ 1,5 milhão a vocês pela carta.”

“Não, não, não… Mas não foi ‘aceite’ não, tá? Isso aí, faz o seguinte: tem a possibilidade de você pedir para eles o comprovante? Alguma conta que fez depósito? Porque não tem.”

Em seguida, Cristiano falou novamente que não houve o “aceite”, reforçou o pedido do envio de perguntas por e-mail, dizendo que iria colaborar com as respostas, mas não retornou mais ao blog até a publicação da reportagem.

O blog também enviou uma série de perguntas por e-mail para a OZZ Saúde, mas não houve retorno.

Salários atrasados

Além da OZZ Saúde, são réus na ação de improbidade na 6ª Vara de Fazenda Pública do Rio o ex-subsecretário executivo de Saúde Gabriell Neves e o ex-secretário Edmar Santos. Ambos estão presos acusados de desvios de verbas do setor durante a pandemia.

A OZZ e o Ministério Público travam uma queda de braço na Justiça, que, até agora, vem sendo vencida pela segunda parte. Uma liminar impede que o estado repasse recursos para a empresa, que, apesar disso, deve continuar mantendo o serviço do Samu em atividade na capital.

Os promotores alegam que a empresa já recebeu antecipadamente, de forma irregular, mais de R$ 27 milhões. Diante de notícias de que o Samu poderia parar, o MP chegou inclusive a redigir uma petição solicitando à Justiça que o dono da companhia seja preso em flagrante caso isso aconteça.

Na terça (7), o desembargador Cesar Marques Carvalho, vice-presidente do Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região, enviou ofício para a juíza Regina Lucia Chuquer, da 6ª Vara de Fazenda Pública, pedindo a liberação de recursos para pagamento dos salários dos funcionários. A OZZ incluiu uma tabela com R$ 5,1 milhões relativos a pagamentos com vencimento em 6 de julho. 

O blog apurou que a situação de funcionários é crítica. Alguns já estariam com dois meses de salários atrasados. No mês passado, um grupo fez um protesto em frente ao Palácio Guanabara.

O que diz o governo

A Secretaria estadual de Saúde encaminhou a seguinte nota:

“A Secretaria de Estado de Saúde (SES) esclarece que por decisão da Justiça, está impedida de fazer novos repasses à OZZ Saúde, além dos R$27,3 milhões já pagos, e que o contrato está sendo auditado pela pasta por vício de finalidade em valores de serviços prestados, insumos e bancos de horas.

Os pagamentos serão retomados se os contratos forem considerados regulares. A secretaria já repassou todas as informações que foram solicitadas e estuda no momento a possibilidade de pagamento de, ao menos, os valores equivalentes às folhas de pagamento e insumos.

A SES frisa que a decisão da Justiça obriga a empresa a fazer o pagamento aos profissionais e a manter o serviço em operação”.

*Foto em destaque: Foto ilustrativa de ambulâncias do Samu / Maurício Basílio / Secretaria estadual de Saúde

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