Passados oito meses da decretação oficial de emergência decorrente da pandemia de Covid-19, o Estado do Rio ainda colhe frutos amargos dos desmandos que tomaram conta da área da Saúde. Às margens da Avenida 22 de Maio, em Itaboraí, na Região Metropolitana, diversas alas inacabadas de um hospital são mais um retrato do caos administrativo que se instaurou na gestão de Wilson Witzel.
Em agosto, uma parte do Hospital Municipal São Judas Tadeu chegou a ser inaugurada, com direito à solenidade com as presenças do prefeito, Dr. Sadinoel, do então governador e de diversos políticos. Desde o fim de setembro, porém, o restante da obra parou, e a entrega completa da unidade ainda é uma grande incógnita.

A contratação realizada pelo governo estadual – com custo total de R$ 11,6 milhões – ocorreu de forma emergencial, em poucos dias entre março e abril, sem levantamento de preços com possíveis concorrentes. E a empresa escolhida de forma direta, a Crater Construções, aparece na delação do ex-secretário estadual de Saúde, Edmar Santos.

Executado sob a supervisão da Secretaria estadual de Cidades, o projeto teve como o principal responsável dentro da pasta um jovem recém-formado em engenharia, que inclusive assinou um laudo técnico que embasou a contratação às pressas.
O retrato atual é o seguinte: paredes e mais paredes à espera de acabamento; uma auditoria interna realizada, cujo teor não foi divulgado; e a empresa cobrando ao menos R$ 5,4 milhões que já teriam sido investidos para que retome os trabalhos.
Projeto do ano passado
Para entender a história do hospital inacabado é preciso voltar no tempo para antes da pandemia. O projeto começou a ser pensado dentro do governo estadual em setembro de 2019, quando o ex-secretário de Saúde Edmar Santos enviou um ofício ao ex-secretário de Cidades Juarez Fialho pedindo uma parceria entre as pastas para a realização de obras.
Na sequência, em 13 de novembro, foi publicado um termo de cooperação técnica em que a Saúde se comprometia a repassar R$ 124 milhões para a pasta de Cidades tocar os projetos, entre eles o do São Judas Tadeu.
Foi feito um plano de execução, incluindo o orçamento, por um consórcio mineiro chamado Inovação e Parcerias, composto pela empresa Houer Consultoria e Concessões e pelo escritório de advocacia M. Viana. Esse consórcio havia sido contratado em agosto de 2019, por R$ 24,1 milhões, pela pasta de Cidades para a elaboração de uma série de relatórios de apoio à gestão pública.
No caso da unidade de Itaboraí, todo o plano foi concebido para a contratação de uma empreiteira através de um Regime Diferenciado, em que seria levado em conta na seleção não só o preço, como também a capacidade técnica.
Mas aí surge a pandemia.
Contratação a jato
No mesmo dia 16 de março deste ano em que Wilson Witzel publicou o decreto reconhecendo a situação de emergência na Saúde Pública no Estado do Rio diante do avanço do coronavírus, o engenheiro civil e então assessor da Secretaria de Cidades Gleisson Oliveira de Araújo foi ao imóvel abandonado planejado para abrigar o hospital para a confecção de um laudo técnico.
Gleisson, conforme registro em suas redes sociais, havia se formado há cerca de um ano, na PUC de Minas Gerais. A pouca experiência não foi empecilho, porém, para que ele não só assinasse o laudo, como também solicitasse alternativas de contratação da obra no contexto da pandemia ao consórcio que havia sido contratado para conceber o projeto.
A partir dali, tudo aconteceu de forma muito rápida. Em 6 de abril, o Consórcio Inovação e Parcerias manda um documento ao então subsecretário de Cidades Alex Ribeiro Gomes dando sinal verde para a contratação emergencial, sem licitação.
No dia 8, um parecer jurídico interno também opina pela possibilidade de dispensa de licitação desde que obedecidas algumas adequações. Sem muito respiro, na mesma data, foi assinado o contrato com a Crater Construções. Não há referência à consulta de qualquer outra empresa para a execução da obra.
Obras paradas
Gleisson Oliveira de Araújo, o engenheiro recém-formado que assinou o laudo inicial, também foi o responsável por ir atestando as fases de conclusão dos trabalhos, que geraram as notas fiscais da empresa. Ao todo, acumularam-se então R$ 5,4 milhões em dívidas do estado com a companhia.
Em agosto, com o ex-secretário Alex Bousquet no comando da Secretaria da Saúde, é determinado que a pasta não realize repasses para que a Secretaria de Cidades pudesse pagar a Crater Engenharia até que fossem realizadas reuniões técnicas.
Em ofícios enviados nos dias 10 e 11 de setembro, Alex Ribeiro Gomes e Juarez Fialho, então subsecretário e secretário de Cidades, pressionam pela liberação dos recursos, sem sucesso. Em 29 de setembro, uma visita técnica constata a paralisação da obra, por falta de pagamentos.
De outubro para cá, consolidou-se a incógnita. Já com Uruan Cintra de Andrade no comando da pasta de Cidades, foi realizado um relatório de auditoria do contrato ao qual não foi dada publicidade.
Nesta quarta (11), o blog procurou as assessorias de imprensa das secretarias de Saúde e de Cidades. Uma pasta informou que a outra daria os esclarecimentos solicitados. Nenhuma respondeu.
Construtora citada em delação
A situação da obra do Hospital São Judas Tadeu é especialmente delicada porque a Crater Construções foi citada recentemente não só na delação do ex-secretário de Saúde Edmar Santos, como em depoimento ao Ministério Público Federal do empresário Edson Torres. Ele era ligado ao presidente nacional do PSC, Pastor Everaldo, preso no âmbito das investigações que levaram ao afastamento de Wilson Witzel.
“Que, além da Verde e da Magna, o colaborador recebeu vantagens indevidas também de uma terceira empresa de Edson Torres denominada Crater, prestadora de serviços terceirizados“, diz o trecho da delação de Edmar Santos.
Oficialmente, a Crater não está registrada em nome de Edson Torres, tendo na verdade como sócios Roberto Torres Quintanilha e Pedro Osório Vargas da Silva Filho. Este último já passou pela presidência do Detran no início dos anos 2000.
Retorno de 10%
Pedro Osório, por sua vez, foi citado no depoimento de Edson Torres, num trecho em que ele fala sobre supostos pagamentos de vantagens indevidas em projetos nos municípios, incluindo a cidade de Itaboraí:
“Que o depoente e seu grupo participaram da discussão a respeito da destinação de verbas para os seguintes municípios: (1) Petrópolis; (2) São João de Meriti; (3) Paracambi; (4) Itaboraí;
Que nos citados municípios houve o ajuste de retorno de valores de 10% para o grupo (de Edson Torres); Que o ajuste do retorno dos valores era feito com o próprio prefeito; Que o ajuste foi feito por Pedro Osório, dono da Crater, e por Edmar Santos; Que nos municípios citados houve o pagamento efetivo dessas vantagens indevidas; Que Pedro Osório fazia o recolhimento junto aos prefeitos ou a alguém indicado pelo prefeito; Que após recolher os valores, Pedro Osório entregava o dinheiro ou ao depoente ou ao Pastor Everaldo”.
En 2018, a Crater já havia assinado dois contratos sem licitação para serviços de manutenção no Hospital Universitário Pedro Ernesto, quando Edmar Santos era o diretor da unidade. Somados, os contratos ultrapassaram a casa dos R$ 10 milhões.
Este ano, a empresa foi contemplada com R$ 11,3 milhões em pagamentos principalmente da Fundação de Apoio à Escola Técnica (Faetec). Além disso, em 2019 e 2020, a companhia conquistou três contratos sem licitação com a Cedae, num valor total de R$ 42,2 milhões.
Outro lado
O blog entrou em contato com a Crater nesta quarta através do telefone da empresa que consta no site da Receita Federal. A reportagem pediu a um homem que atendeu que passasse um endereço de e-mail para que fossem mandadas perguntas por escrito. Passado algum tempo em silêncio, a ligação caiu. Na segunda tentativa, foi dito que a empresa não iria se pronunciar.
Também foi tentado contato com o engenheiro Gleisson Oliveira de Araújo através do e-mail de uma associação privada da qual ele aparece na Receita Federal como sendo diretor, o Instituto Gauss, com sede em Belo Horizonte. Não houve retorno.
A reportagem não conseguiu localizar o ex-subsecretário de Cidades Alex Ribeiro Gomes, assim como os demais citados.
O espaço segue aberto a atualizações.
*Foto em destaque: Prédio do Hospital Municipal São Judas Tadeu, em Itaboraí, com as obras paradas / Reprodução