Imagem ilustrativa de luvas usadas em unidades de Saúde

A mirabolante história da JKL S.A, a fornecedora de luvas para a prefeitura do Rio

Com mais de R$ 6,3 milhões empenhados – ou seja, reservados para pagamento – nas últimas semanas, a prefeitura do Rio enfrenta dificuldades para receber luvas para procedimentos não cirúrgicos encomendadas de uma empresa chamada JKL S.A

No último dia 14, foi dado um ultimato pela Secretaria municipal de Saúde para que a companhia entregue produtos que não chegaram “mesmo após reiteradas solicitações”. O que é mais um ponto de interrogação diante da mirabolante história da companhia, contratada através de dispensa de licitação

Com uma matriz que possui nada menos do que 39 atividades registradas na Receita Federal – a principal é geração de energia, mas há até extração de nióbio -, a JKL S.A tem, logo de cara, um fato que chama a atenção: para aumentar seu capital social, usou um tipo de documento que vem sendo classificado como falso pela Secretaria do Tesouro Nacional (STN). 

Em março de 2020, a companhia, à época com outro nome, apresentou na Junta Comercial um Certificado do Tesouro Nacional para chegar a um capital de mais de R$ 8,9 bilhões. Atualmente, o capital social é ainda maior, de R$ 9,1 bilhões. Sim, bilhões. 

Os dados do documento têm especificações iguais às citadas numa nota pública da STN relacionada à prevenção de fraudes, que ainda fala na impossibilidade de “repactuação” desses títulos, que seriam da década de 1970. 

A assessoria de imprensa do órgão confirmou ao blog que “isso indica sim falsidade, de acordo com nossa página sobre fraude em títulos públicos no site do Tesouro”. 

Trecho do registro da JKL na Junta Comercial que faz referência ao certificado
Nota Pública da Secretaria do Tesouro Nacional

“Documentação regular”

Ao ser questionada inicialmente sobre o certificado, a JKL S.A afirmou, por e-mail, que “toda documentação (da empresa) é de consulta pública, qualquer cidadão pode fazer a busca do mesmo, regular e declarado na Receita Federal”.

Após um pedido de mais detalhes, a empresa acrescentou nesta terça (18) que “foi solicitado ao jurídico o envio da confirmação do Banco Central junto ao título utilizado, deixando claro que esta mesma indagação foi feita por outro meio de comunicação que precisou se retratar por ter utilizado a mesma conotação de documento falsificado”.

Até o fechamento desta reportagem, porém, não houve o envio. 

Já a Secretaria municipal de Saúde disse em nota (íntegra no fim do texto) que a JKL S.A “apresentou o melhor preço, além de toda a documentação exigida”. 

Sem especificar quantidades, a pasta afirmou ainda que “embora tenha feito algumas entregas, a empresa não mantém a regularidade dos prazos e quantidades previstas no contrato, o que levou a secretaria a notificá-la”.   

A JKL S.A, por sua vez, disse que foram “atendidas as notas de empenho recebidas até o momento, sendo que algumas destas de forma parcial, perante a liberação dos volumes pela importadora”.

R$ 6,3 milhões

A autorização para a aquisição das luvas com a JKL S.A foi publicada pela Secretaria municipal de Saúde no dia 1º de abril. Ao todo, o valor previsto foi de R$ 12,2 milhões. Até agora, porém, houve 27 empenhos que somam R$ 6,3 milhões, segundo levantamento realizado pelo gabinete da vereadora Teresa Bergher a pedido do blog.

No dia 8 de abril, a reportagem solicitou, via Lei de Acesso à Informação, a íntegra do processo administrativo de contratação da empresa. O prazo se esgotou em 10 de maio, mas não houve nenhuma resposta da prefeitura ao pedido. 

No início de março, a secretaria havia contratado, no mesmo processo, uma outra companhia, chamada Open Farma Comércio de Produtos Hospitalares. O valor acertado de cada caixa com cem unidades foi de R$ 75,90. A empresa, porém, não fez as entregas e enviou carta ao município pedindo o aumento para R$ 105,55, o que não foi aceito. 

Em abril, então, foi contratada a JKL S.A com um valor de R$ 98 por caixa. 

Preço mais caro

Para chegar neste valor, a prefeitura do Rio usou como referência uma ata de registro de preços conquistada pela empresa no Governo do Distrito Federal. Em 9 de outubro do ano passado, a companhia venceu um pregão para o fornecimento de luvas a R$ 0,37 a unidade. Ou seja, R$ 37 a caixa. 

No dia 18 de janeiro, porém, a JKL S.A conseguiu autorização da Secretaria de Saúde do DF para reajustar o preço para R$ 0,9832 a unidade, ou R$ 98,32 a caixa. A prefeitura do Rio então pegou carona, negociando uma redução para R$ 98. 

Efetivamente, nos últimos meses, os preços de luvas têm variado muito, chegando inclusive a passar de R$ 100 a caixa. O painel de análise comparativa de preços Covid-19, do Ministério da Economia (tabela aqui) disponibiliza apenas valores até novembro do ano passado, mês em que a média ficou em R$ 44,61.

Mas o que chama a atenção é que, no dia 25 de janeiro, a própria JKL S.A ganhou um pregão eletrônico com registro de preço do Governo do Estado de Rondônia para o mesmo produto oferecido ao DF com valor quase 30% mais em conta. 

Conforme a tabela abaixo, a caixa saiu entre R$ 69,99 e R$ 71,87. 

Conglomerado

Durante a pandemia, a JKL vem participando de uma série de licitações Brasil afora de insumos voltados para a prevenção da Covid. A matriz da empresa, que possui o capital social bilionário no papel, foi criada há pouco mais de dois anos, em 8 de abril de 2019. 

Nos certames que participa, tem sido usada uma filial, aberta em junho do ano passado, que possui como atividade principal o comércio de materiais médicos. Tanto a matriz quanto a filial ficam no bairro de Aldeota, em Fortaleza.  

Quem aparece atualmente como presidente da companhia é Rafaelly Ripari Morrone. Apesar de não haver qualquer referência a ela na internet como uma grande empresária, Rafaelly teve nos últimos dois anos participação na gestão de pelo menos 16 empresas.

Entre elas, estão a JKL Mineração, de extração de minérios como ferro, nióbio e titânio; a Nella Gestor de Pagamentos, de administração de cartões de crédito; a Nella Café, de comércio atacadista de café; e até a Nella Linhas Aéreas. 

Companhia aérea

Apesar de não estar atualmente na JKL S.A, um nome que aparece em algumas empresas junto com Rafaelly é o de Maurício Araújo de Oliveira Souza. Nos registros da Junta Comercial do Ceará, ele consta como representante da JKL Holdings S.A, uma companhia com sede no Panamá, que chegou a ser acionista da JKL S.A em dezembro do ano passado.

Em suas redes sociais, Maurício se apresenta como CEO da Nella Airlines, que teria intenção de iniciar suas atividades no setor aéreo este ano. 

O empresário conversou por ligação de WhatsApp com o blog na terça (18). Disse que não tem mais relação com a JKL S.A, mas garantiu que se trata de uma empresa séria. Com relação ao certificado usado para aumentar o capital social, negou que fosse falso, dizendo que inclusive é usado por grandes bancos. 

Por fim, afirmou que sites que publicaram a informação tiveram que tirar a reportagem do ar e citou uma indenização de R$ 2,6 milhões, sem dar detalhes. 

Outro lado

Abaixo, a íntegra dos esclarecimentos enviados pela Secretaria municipal de Saúde a respeito da contratação da JKL S.A para o fornecimento de luvas: 

“A secretaria segue todos os ritos legais em seus processos de licitação, inclusive nos emergenciais, o que inclui ampla consulta de preços ao mercado fornecedor e às empresas beneficiárias das atas vigentes de outros entes federativos, inclusive pela internet. 

Os processos são claros e transparentes, publicados no Diário Oficial do Município, e são abertos a todas as empresas que demonstrem interesse e apresentem suas propostas acompanhadas da documentação exigida na legislação para o tipo de contratação e descritas nos editais. 

É notório que, diante da alta demanda, as luvas sofreram aumento substancial no mercado, não podendo servir de comparação pesquisas simples de internet e atas registradas sem avaliação específica caso a caso.

Com a grande necessidade de aquisição de luvas descartáveis para as unidades, a Secretaria Municipal de Saúde realizou em janeiro processo emergencial, seguindo todos os trâmites legais. 

Das empresas que mandaram suas propostas, a vencedora foi a Open Farma Comércio de Produtos Hospitalares que, no entanto, não fez as entregas no prazo estipulado, sendo notificada no Diário Oficial de 23 de março. 

A empresa, então, enviou carta datada de 26 de março em que pedia o realinhamento de preço para R$ 105,55 a caixa do insumo, bem acima da proposta que havia apresentado, de R$ 75,90, o que foi recusado pela secretaria. 

A Open Farma então desistiu do contrato. A Secretaria de Saúde abriu procedimento administrativo para punir a empresa dentro do que prevê a legislação.

Diante da desistência da Open Farma, as propostas das outras concorrentes do processo emergencial foram avaliadas, e a JKL S/A. foi a que apresentou o melhor preço, R$ 98, além de toda a documentação exigida, sendo então contratada. 

No entanto, embora tenha feito algumas entregas, a empresa não mantém a regularidade dos prazos e quantidades previstas no contrato, o que levou a secretaria a notificá-la em 14 de maio.

Ressalta-se que a JKL S/A tem ata de registro de preços em vigor no Distrito Federal, cuja caixa de luvas com 100 pares custa R$ 98,32. Ou seja, no processo emergencial do Município do Rio, em negociação da SMS, a empresa aceitou baixar seu preço registrado em R$ 0,32 na assinatura do contrato.

Todas as medidas administrativas e legais estão sendo tomadas pela secretaria para garantir o abastecimento dos insumos nas unidades da rede municipal”.

*Foto em destaque: Imagem ilustrativa de luvas usadas em unidades de Saúde / Artem Podrez / Pexels

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