Dois meses antes de deixar o posto de diretor do Hospital Universitário Gaffrée e Guinle para assumir o cargo de secretário estadual de Saúde do Rio, Fernando Ferry pagou caro por Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) comprados sem licitação para abastecer a unidade durante a pandemia do coronavírus.
Em três compras emergenciais, em março, com a Innova-med Comercial Eireli, que somaram R$ 700,6 mil, o hospital chegou a pagar valores até três vezes maiores do que o próprio Gaffrée e Guinle pagou para outras empresas contratadas – também na pandemia -, mas através de processos de chamamento público.
Sem histórico de comércio com o Poder Público para além do momento atual, a Innova-Med já está sendo alvo de uma ação popular por suspeitas de superfaturamento na venda de máscaras cirúrgicas para a prefeitura de Guarulhos, na Região Metropolitana de São Paulo.
Também em março, o município pagou, de forma antecipada, R$ 1,88 milhão pelas máscaras, ao preço de R$ 6,20 a unidade. O Ministério Público de Contas abriu investigação pois, mesmo durante a pandemia, é possível encontrar valores na faixa de R$ 2.
Na ação popular, do vereador Dr. Laércio Sandes (DEM), a Justiça bloqueou contas da empresa, mas só encontrou pouco mais de R$ 177 mil. O sigilo bancário da Innova-Med foi quebrado para tentar rastrear o caminho do dinheiro que saiu dos cofres públicos.
Mais barato no próprio hospital
No Gaffrée e Guinle, a intenção inicial também era fazer uma compra milionária de máscaras cirúrgicas. No dia 20 de março, chegou a ser publicado um extrato de dispensa de licitação que previa o repasse de R$ 1,280 milhão para a Innova-Med. Segundo a assessoria de imprensa do hospital, porém, a empresa cancelou a venda, em 29 de abril, alegando que “não estava conseguindo comprar e atender a todas as exigências do produto em tempo hábil”. A decisão ocorreu quando a companhia já estava sendo investigada em São Paulo.
Ainda assim, foram pagos, sem licitação, pelo hospital à Innova-Med R$ 68,1 mil, ao preço de R$ 4,80 por cada máscara, segundo dados que constam no site do Gaffrée e Guinle. Numa outra compra, de R$ 98,2 mil, feita pela própria unidade durante a pandemia, mas por chamamento público, foi pago um valor de R$ 1,90 à Tocantins Comércio de Produtos Hospitalares Eireli.
O hospital ainda pagou R$ 321,7 mil à Innova-Med por aventais hospitalares, ao preço unitário de R$ 49,50. Mas o mesmo Gaffrée e Guinle, também durante a pandemia, adquiriu, por R$ 15 cada, a roupa de proteção da empresa Premium Hospitalar Eireli, numa compra de R$ 387,9 mil. Outro exemplo é do Hospital dos Servidores, que pagou R$ 23, numa compra realizada em 27 de março. Em 30 de abril, o Fundo Municipal de Saúde de Macaé comprou, por pregão, 7.174 peças, ao valor de R$ 13,40 cada.
Por fim, a Innova-Med também recebeu R$ 310,7 mil por um outro modelo de máscara, que oferece uma proteção maior para profissionais que lidam com pacientes com coronavírus. O valor unitário foi de R$ 47,80. O mesmo Gaffrée e Guinle pagou R$ 12,50 num modelo aparentemente com características semelhantes, adquirido da Biogeoenergy Fabricação e Locação de Equipamentos, numa compra de R$ 103,4 mil.
Ex-dono já foi preso
De acordo com dados da Junta Comercial do Rio, a matriz da Innova-Med fica numa sala comercial na Avenida Ayrton Senna, na Zona Oeste. No papel, o dono é um jovem, morador do bairro Jardim das Oliveiras, em São Paulo, chamado Michel Ueslei dos Santos. O blog tentou localizá-lo, sem sucesso.
Ele passou a ser o dono da empresa em agosto do ano passado, quando adquiriu R$ 300 mil em cotas de Manoel Carlos Gomes Estevam. Por sua vez, Manoel havia comprado a companhia, no fim de março de 2019, de Julio Bruno de Queiroz Filho.
No dia 3 daquele mesmo mês, Julio havia deixado a prisão, onde estava desde 26 de outubro de 2018. Ele foi um dos alvos da Operação Coração Leviano, do Ministério Público Federal, que apontou um suposto esquema de pagamento de propina envolvendo fornecedores e funcionários do Instituto Nacional de Cardiologia de Laranjeiras.
De acordo com a denúncia do MPF, o empresário, hoje com 70 anos, teria atuado como operador financeiro do esquema. Nos autos, há inclusive imagens de Julio recebendo um pacote de dinheiro de um fornecedor que se tornou colaborador da Justiça.
“Sem relação”
O blog entrou em contato com Julio ao mandar, na tarde desta quinta (5), uma mensagem com perguntas para o endereço de e-mail que consta no site da Receita Federal como sendo o da Innova-Med. Logo em seguida, o empresário entrou em contato com a reportagem por telefone e afirmou que se desligou completamente da companhia quando fez a venda, em março de 2019, para Manoel Estevam.
No processo de compra emergencial da prefeitura de Guarulhos, a proposta enviada por um outro e-mail da Innova-Med ao município tem o nome “Julio” como sendo o contato da empresa.
O advogado Tiago Lins e Silva, que representa o empresário, enviou os seguintes esclarecimentos ao blog:
“Inicialmente, quanto ao processo de 2018 (Operação Coração Leviano), Julio vem apresentando todos os esclarecimentos perante a Justiça, confiando que será inocentado das acusações que lhe foram feitas, sendo certo que nunca foi operador de esquema algum de propina.
Quanto aos demais questionamentos, é fundamental deixar claro que o Sr. Julio não vem atuando pela empresa Innova-Med e não é o representante de tal companhia em qualquer processo licitatório ou qualquer outro ato, desconhecendo por completo a citada licitação junto à prefeitura de Guarulhos ou venda de material ao Hospital Gaffrée e Guinle.
Acerca da Innova-Med, o Sr. Julio vendeu a empresa em 29/3/2019, conforme registro na Junta Comercial, arquivado em 01/04/2019, não tendo mais qualquer relação com a referida empresa e desconhecendo suas atividades posteriores, sendo que nunca mais a representou, reitere-se, seja em licitações ou em qualquer outro ato.
Cabe esclarecer, por fim, que o Sr. Julio não tem ciência da referida ação e nem das citadas medidas de bloqueio e quebra de sigilo bancário, cabendo aos atuais dirigentes e representantes da empresa responderem a tais questionamentos”.
Mais de 20 consultas
O blog entrou em contato com a Secretaria estadual de Saúde por e-mail, mas a pasta disse que não se pronunciaria porque o caso se refere ao período em que Fernando Ferry foi diretor do Hospital Gaffrée e Guinle.
Ferry assumiu a pasta estadual no dia 18 de maio, substituindo Edmar Santos, em meio a uma crise cercada de suspeitas de corrupção, que levou inclusive à prisão do ex-subsecretário de Saúde, Gabriell Neves.
Já a assessoria de imprensa da unidade enviou uma lista com mais de 20 e-mails de empresas que foram consultadas no processo de dispensa de licitação vencido pela Innova-Med.
*Foto em destaque: Fachada do Hospital Gaffrée e Guinle / Elisabetetn / Wikipedia
Admiro muito o seu trabalho. O Jornalismo vive!
Obrigado! 🙂