Como se não bastasse um déficit habitacional de mais de 460 mil moradias, anos e anos de descaso com um direito básico do cidadão ainda criaram em território fluminense uma situação que beira o surreal. Números de dezembro do ano passado, que constam em documentos internos da Companhia Estadual de Habitação do Rio de Janeiro (Cehab-RJ), revelam que nada menos do que 56.920 imóveis construídos pelo próprio estado não estão legalizados.
São mutuários que adquiriam casas e apartamentos da Cehab-RJ ao longo de décadas, mas que até hoje não têm a documentação definitiva. Somente na Região Metropolitana, há 51.101 unidades nesta situação. Os dados acenderam a luz vermelha na companhia que, entre restrições orçamentárias, tenta traçar estratégias que possam reduzir esse passivo.
A estimativa da Coordenadoria Jurídica da empresa é que essa imensa lacuna tenha gerado cerca de R$ 135 milhões de IPTU inscritos em Dívida Ativa somente no município do Rio de Janeiro.
O setor jurídico da Cehab-RJ ainda teme ações judiciais de mutuários pelo prejuízo causado pela falta de documentação. A estimativa é que, se apenas 2% deles resolverem pedir ressarcimento pelos danos causados pela falta da escritura definitiva do imóvel, os valores pleiteados em tribunais podem passar da casa de meio bilhão de reais.
Falta de funcionários
A preocupação vem sendo recorrente na companhia. Documento de 28 de fevereiro da Coordenadoria de Patrimônio destaca: a Cehab-RJ “também se encontra inscrita na Dívida Ativa de outros municípios do Estado do Rio de Janeiro, entretanto não temos funcionários suficientes para todas as atribuições”.
“Avançamos pouco ou quase nada no sentido da verificação das inscrições que, de fato, pertencem à Cehab-RJ, acreditamos que, especialmente, pelo escasso quadro de funcionários”, diz o ofício.
Segundo a assessoria de imprensa da companhia, “com o estado em Regime de Recuperação Fiscal, é proibida a realização de concursos”. “Está sendo estudada a contratação de estagiários e licitação de uma consultoria para esse fim”, completou.
Sobre as dívidas de IPTU, a empresa tem como principal aposta uma ação que corre no Supremo Tribunal Federal (STF):
“Existe um processo no STF movido pela Cehab, baseado na natureza jurídica da companhia, que é uma prestadora de serviço e não exploradora de atividade econômica. O nosso público é carente, com grande apelo social. O Supremo tendo esse entendimento, automaticamente, a empresa fica isenta de pagamento de IPTU e de outros tributos”.
“Outra ação é a entrega de títulos de concessão especial de uso para fins de moradia e escrituras. Mediante o registro, a companhia encaminha o oficio informando a transferência de propriedade e , consequentemente, a dívida passa a ser do proprietário”, concluiu a assessoria da empresa.
Empresa faz mutirões
Criada há 57 anos, a Cehab-RJ tem problemas históricos relacionados a legalizações de imóveis. Curiosamente, os conjuntos habitacionais da empresa foram oferecidos, nas últimas décadas, a pessoas que moravam em favelas, em áreas de risco, como opção de uma moradia regular.
Pelo comando da companhia, já passaram diversos políticos, entre eles até o ex-presidente da Câmara, Eduardo Cunha, preso pela Operação Lava Jato. Ele chegou a ser alvo de uma ação de improbidade pela contratação de uma empresa durante o período em que comandou a Cehab-RJ, mas o processo acabou arquivado, por prescrição, em 2014.
Atualmente, o presidente da Cehab-RJ é o engenheiro civil Ângelo Monteiro Pinto. Para tentar reduzir as pendências de documentação dos imóveis, foi criado, no ano passado, um programa chamado “Moradia Legal”, que tem feito mutirões para regularização.
Uma das principais dificuldades encontradas é que muitos desses imóveis já foram repassados pelos mutuários a outras pessoas, através de contratos de gaveta.
À espera de sede
Uma outra iniciativa importante para expandir a legalização seria colocar em funcionamento a Câmara de Resolução de Litígios de Habitação e Regularização Fundiária do Estado do Rio de Janeiro, prevista para funcionar em parceria entre o Executivo e o Tribunal de Justiça.
Em documento do mês passado, a Coordenadoria Jurídica da Cehab-RJ destacou a urgência deste trabalho exatamente por causa do “incomensurável número de unidades habitacionais não legalizadas”. Para que a Câmara comece a funcionar, é necessário que sejam realizadas obras em um imóvel previsto para servir como sede, na Rua da Carioca, no Centro do Rio.
A iniciativa também seria importante para dar suporte a demandas de mediação de reassentamento de moradores decorrentes de obras públicas estaduais, como às do programa Comunidade Cidade. O bilionário projeto, menina dos olhos do governador Wilson Witzel, vai começar pela Rocinha e prevê a remoção de imóveis.
De acordo com a assessoria de imprensa da estatal, “está sendo estudada a viabilidade econômica da proposta” da sede da Câmara de Resolução de Litígios.
301 procedimentos
Atualmente, um dos principais focos de ação de regularização tem sido o Conjunto Santa Margarida, em Cosmos, Zona Oeste do Rio.
Na atual gestão, foram realizados 301 procedimentos de regularização fundiária. Outro desafio é a retomada de obras paradas em conjuntos habitacionais. Um exemplo é o do Conjunto Boa Vista, em Laje do Muriaé, no Noroeste Fluminense, de 188 casas, cujos trabalhos recomeçaram em julho do ano passado.
*Foto em destaque: Imagem ilustrativa de conjunto da Cehab-RJ / Divulgação
Berta, ótima matéria. Meu pai é funcionário da Cehab-RJ há mais de 40 anos. Nesse período muita coisa aconteceu, inclusive a frequente mudança da sede. Hoje a Cia funciona em alguns andares emprestados de outra entidade estadual em Botafogo e aguardam uma nova mudança em breve. Antes da mudança para lá, a empresa ficou sem sede depois de ser despejada do prédio onde ocupava mais de dois andares no Centro do Rio. Nesse período, a diretoria se reunia em uma loja do Rei do Mate para despachar.