Estado do RJ teve ‘liberou geral’ de pagamentos de OSs no início do ano

Apesar dos frequentes indícios de irregularidades apontados por comissões internas de fiscalização, as Organizações Sociais que prestam serviço ao Estado do Rio ganharam um presente no início deste ano. Num ofício de apenas cinco frases, de 27 de janeiro, a então subsecretária executiva de Saúde, Maria Thereza Lopes de Azevedo, autorizou o pagamento integral dos repasses a OSs referentes a 2019, sem que houvesse qualquer tipo de glosa.

A glosa ocorre quando a entidade não consegue comprovar o uso adequado dos recursos, dentro do estabelecido nas regras contratuais, e precisa devolver aos cofres públicos os valores apontados. O caso específico que suscitou o ofício tratava de uma consulta a respeito de R$ 703 mil questionados, referentes a um contrato com a Viva Rio, de gestão da Unidade de Pronto Atendimento (UPA) de Irajá.

Ao ser provocada, a então subsecretária encaminhou o documento à Superintendência de Controle e Compliance determinando também a devolução de todos os valores que porventura já tivessem sido retidos. As justificativas foram o fato de o estado ter dívidas referentes a anos anteriores; as OSs serem entidades sem fins lucrativos, que dependem dos recursos para manter os serviços, e que a “glosa penaliza o cliente-cidadão”.

A determinação dada em janeiro voltou à tona nas últimas semanas já que, no dia 30 de julho, o atual secretário de Saúde, Alex Bousquet, pediu para que fossem realizados estudos internos sobre a incidência de glosas. O processo ainda está em andamento.

Em nota (íntegra no fim do texto), a pasta reafirmou que os contratos estão sob auditoria e acrescentou que, na gestão de Bousquet, “passou a fazer o repasse da parcela vinculado aos critérios de indicadores de desempenho”.

Mistério nas glosas

A extensão exata do “liberou geral” das OSs, no entanto, é um mistério. O blog questionou a secretaria se, desde o início de 2019, no governo Wilson Witzel, já houve efetivamente alguma glosa efetivada. E, se sim, qual o valor devolvido aos cofres públicos. Não houve resposta.

Internamente, o assunto ainda parece bastante nebuloso. Um recente despacho da Superintendência de Acompanhamento de Contratos de Gestão, que lida diretamente com o tema, revela um quadro preocupante até mesmo de desconhecimento de regras para a devolução de recursos:

“Ressalta-se, todavia, que não existem normas vigentes (grifo do próprio despacho) prevendo procedimento ou prazo para aplicação de glosas, sequer definições acerca das hipóteses que ensejam o não reconhecimento de despesas das OSs, o que dificulta a criação de um padrão para o instituto ora em análise.

Tampouco, existe normativo da Secretaria de Saúde que estabeleça o tipo de penalidade ou a graduação em sua aplicação frente a um descumprimento contratual ou uma infração cometida pela OS”.

R$ 1,7 bi em 2019

Sem regras bem definidas e sem punição na prática, o que tem se visto é uma montanha de dinheiro deixar os cofres do estado sem que haja uma fiscalização que efetivamente dê resultados.

Um levantamento feito pelo gabinete do deputado Renan Ferreirinha (PSB) a pedido do blog mostra que, somente em 2019, 15 Organizações Sociais receberam nada menos do que R$ 1,719 bilhão para gerir unidades de Saúde do governo estadual.

No ano passado, a entidade que mais recebeu recursos foi o Instituto dos Lagos Rio, com R$ 292,1 milhões. Coincidentemente, essa mesma OS foi alvo este ano de uma operação do Ministério Público, que apontou indícios de desvios de verbas milionários. Em seguida, veio o Hospital Psiquiátrico Mahatma Gandhi, com R$ 250,4 milhões. Ou seja, só essas duas Organizações Sociais levaram 30% do bolo.

Na sequência, vieram o Iabas – que administrava o Hospital Adão Pereira Nunes -, com R$ 198,4 milhões; a Associação Pró-Saúde, com R$ 171,9 milhões, e o Instituto Gnosis, com R$ 159,1 milhões.

Fiscalização lenta

O Instituto dos Lagos Rio, entidade que mais recebeu verbas em 2019, vem sendo objeto constante de questionamentos por parte de comissões de fiscalização da Secretaria de Saúde. Na prática, porém, é difícil saber se alguma punição efetivamente acontece.

Em junho, por exemplo, o blog mostrou como a OS montou uma espécie de “negócio de família”, beneficiando parentes do então responsável médico da instituição, Juracy Batista de Souza Filho. Fatos semelhantes foram narrados na denúncia do MP que, também naquele mês, culminou com a prisão de Juracy e outras pessoas ligadas à Organização Social.

Em geral, porém, na Secretaria de Saúde, o que se vê são os desdobramentos das fiscalizações internas se arrastarem. Houve um caso até, de junho passado, em que a Subsecretaria de Controle Interno e Compliance recomendou a suspensão do contrato do Instituto dos Lagos Rio para a gestão do complexo do Hospital Alberto Torres.

Conforme o blog havia noticiado, a OS usou recursos que seriam voltados para a unidade para pagar um escritório de advocacia que cobrou administrativamente dívidas de anos anteriores. O processo que apura possíveis irregularidades neste pagamento está parado desde 15 de julho. A última movimentação é um ofício da Organização Social defendendo a legalidade da sua iniciativa.

Outro lado

O documento que liberou os pagamentos sem glosa foi assinado em janeiro deste ano pela então subsecretária executiva de Saúde, Maria Thereza Lopes de Azevedo. Ela havia ingressado em janeiro de 2019 no cargo e ficou até 1º de fevereiro de 2020, dando lugar a Gabriell Neves, atualmente preso sob a acusação de desvio de verbas durante a pandemia. Entre fevereiro e maio, ela foi diretora da Fundação Saúde.

Maria Thereza era ligada ao ex-secretário de Saúde, Edmar Santos. Ela tinha exercido anteriormente o cargo de diretora de Administração Financeira do Hospital Universitário Pedro Ernesto, quando Edmar era o diretor-geral. O blog não conseguiu contato com a ex-subsecretária, mas o espaço segue aberto para esclarecimentos.

A Secretaria estadual de Saúde enviou a seguinte nota a respeito das glosas:

“A Secretaria de Saúde, nesta nova gestão, iniciada com a posse do secretário Alex Bousquet, passou a fazer o repasse da parcela vinculado aos critérios de indicadores de desempenho, conforme previstos em contrato com as OS’s dos hospitais, de acordo com relatórios elaborados pela Comissão de Acompanhamento e Fiscalização (CAF). Ou seja, se a unidade não cumpriu a meta em sua integralidade, vem sofrendo o desconto na parcela mensal conforme o previsto em contrato.

Já em relação às UPAs, em que nem todos os contratos previam essa glosa por atingimento de meta, os novos contratos celebrados pela nova gestão já contemplam a vinculação do repasse integral ao atingimento total das metas de produção. Nesse sentido, a nova gestão está redesenhando os processos das glosas por despesas não reconhecidas das OSs, o que pode ser verificado no processo SEI-080002/001499/2020.

É importante frisar que os contratos antigos estão em processo de auditoria”.

Nesta quarta (26), o governador Wilson Witzel sancionou uma lei que prevê que, na hipótese de rescisão de contrato com OS, haja a possibilidade de pagamento diretamente aos empregados. Recentemente, houve diversos casos de funcionários de unidades de Saúde sem receber no meio da quebra de braços entre as entidades e o governo.

O texto é de autoria original do Executivo, mas foi incluído um artigo, dos deputados Luiz Paulo e Lucinha, que prevê a revogação da lei das OSs, de 2011, em julho de 2024, o que pode abrir caminho para o fim da gestão por essas entidades no estado. O secretário Alex Bousquet também manifestou recentemente intenção de transferir gradualmente a administração das unidades para a Fundação Saúde.

*Foto em destaque: Fachada da UPA de Irajá / Reprodução

2 comentários

  1. Em meio à tanta desinformação, um blog como esse serve de alento para quem procura se informar de verdade. Matéria de primeira qualidade!

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