Já são mais de oito meses de pandemia, com quatro secretários de Saúde diferentes – tendo um passado uma temporada na prisão -, e o governo estadual volta a ser surpreendido pelo coronavírus. Diante do aumento de casos da doença, a Fundação Saúde – órgão estatal de gestão de unidades – abriu esta semana dez contratações emergenciais num período de apenas três dias.
Levantamento feito pelo blog no Sistema Eletrônico de Informações (SEI) mostra que os processos foram iniciados entre terça (24) e quinta (26). O foco é principalmente a compra de insumos para três unidades: Instituto Estadual de Doenças do Tórax Ary Parreiras e os hospitais Carlos Chagas e Anchieta.
O que impressiona é que, mesmo com a perspectiva de que poderia haver um aumento de casos de Covid-19, o estado tenha agora novamente que apelar para contratos sem licitação até para a aquisição de materiais básicos como Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) para os profissionais de Saúde.
Numa leva só, terão que ser comprados, por exemplo, 153 mil máscaras descartáveis; 96 mil máscaras N-95; mais de 1,4 milhão de luvas cirúrgicas; 61,5 mil aventais descartáveis e 93,7 mil toucas cirúrgicas.
Ainda não há definição de quanto tudo irá custar. No caso dos EPIs, nesta quinta (26), a Fundação Saúde mandou e-mails a possíveis fornecedores para solicitar o envio de propostas. A ideia é que tudo seja feito muito rápido: as empresas têm somente até a tarde desta quarta (2) para responder. E o prazo de entrega do material é de cinco dias.
“Estoque crítico”
Nos ofícios que solicitam a compra de medicamentos, há relatos de que os estoques em unidades da Fundação Saúde voltadas para o atendimento de pacientes com a Covid-19 estão em nível crítico.
É o caso, por exemplo, de antibacterianos e antifúngicos: só de amoxilina estão sendo pedidos 20.100 frascos. O mesmo ocorre com os sedativos, como diazepan e morfina.
“Esclarecemos que os itens solicitados estão contemplados em processos regulares sob tramitação no âmbito da Fundação Saúde. Contudo, atualmente, encontram-se em situação de desabastecimento ou estoque crítico em nosso almoxarifado, e, em alguns casos, com pequeno saldo residual em ata de registro de preços para novo empenho, não sendo suficiente para suprir a demanda necessária”, diz um trecho de um texto padrão que acompanha as solicitações de compras.
Os documentos também afirmam que “a modalidade de compra (…) deverá ser a mais viável e vantajosa para a Administração e deve levar em consideração a situação de emergência sanitária em decorrência da pandemia de Infecção Humana pelo coronavírus (SARS–CoV-2) e consequente urgência no atendimento das necessidades da população”.
Na prática, tudo caminha para que não haja licitação em nenhuma contratação.
Contratação de médicos
E não é só para a compra de insumos que estão sendo preparadas as contratações emergenciais. Com a necessidade de aumento no número de leitos no Hospital estadual Anchieta, passando de 10 para 30 de UTI, uma empresa que faz a contratação de médicos através de Pessoa Jurídica também terá de ser selecionada às pressas.
De acordo com o pedido da contratação, é necessário passar de uma carga horária atual de 1.386 horas para 6.426. O tempo estipulado para o serviço extra é de até seis meses. Também para o Anchieta, foi solicitada uma empresa que faça a contratação de profissionais de fisioterapia.
Desde o início da pandemia, esse hospital, que fica no Caju, vem sofrendo com uma série de idas e vindas e desmandos administrativos. Na gestão do ex-subsecretário executivo de Saúde Gabriell Neves – que chegou a ficar preso, mas responde ao processo de desvios de recursos na compra de respiradores em liberdade -, a unidade foi repassada a uma OS, numa contratação com indícios de irregularidades.
Em junho, o hospital chegou a ser fechado, mas foi reaberto em setembro, sob o comando da Fundação Saúde.
Centro de Diagnóstico
Outro processo emergencial aberto pela Fundação Saúde foi para a seleção de uma empresa que contrate médicos socorristas para atuarem num Centro de Diagnóstico de Covid-19 que o estado pretende montar no Hospital Modular de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense.
O projeto foi anunciado pelo governo nesta quinta (26), sem qualquer detalhe de quando e como funcionará na prática. A nota técnica que justifica a iniciativa diz que o objetivo dos centros “é reduzir a circulação de pessoas com sintomas leves em outros serviços de saúde, tornando esses equipamentos a principal referência para o enfrentamento da Covid-19 no território municipal”.
Os dois primeiros centros estariam sendo instalados nos hospitais Zilda Arns, em Volta Redonda, e Alberto Torres, em São Gonçalo. A reportagem não localizou nenhum documento público que fale sobre os gastos referentes a esses dois locais. As unidades vêm sendo administradas desde setembro pela Organização Social Ideas, em contratações diretas, sem processo seletivo ou publicidade, marcadas por suspeitas de irregularidades.
Hospital Modular
O Hospital Modular de Nova Iguaçu, que seria a terceira unidade a abrigar um desses centros, vem sendo um retrato do caos administrativo que marca o setor da Saúde no Estado do Rio durante a pandemia.
Apesar de ter custado mais de R$ 60 milhões, sem licitação, o hospital está há mais de três meses pronto sem receber um paciente sequer. Somente agora, na gestão de Carlos Alberto Chaves na Secretaria de Saúde, foi feita uma vistoria no local, pedida insistentemente pela Secretaria de Obras.
A situação, no entanto, ainda é complicada. A unidade não foi completamente murada, e a Secretaria de Obras informou que só será possível a colocação de grades, que ainda terão de ser compradas. A empresa que realizou a obra não cercou totalmente o local, e o contrato já venceu. E mais: um muro definitivo não pode ser construído porque a União revogou a concessão do terreno, que fica na área de um antigo aeroclube. A pasta está renegociando com o governo federal.
Outra questão também é a segurança. Não foi assinado nenhum contrato para o serviço de vigilância, o que fez com que a Secretaria de Obras pedisse o apoio da PM. Ainda sem uso, esse hospital vem sendo usado como depósito de equipamentos que estavam na unidade de campanha de São Gonçalo, que foi desativada. Há até 28 respiradores no local.
Aumento de casos
Responsável pelas dez contratações emergenciais que estão sendo feitas pelo estado, a Fundação Saúde também teve várias mudanças de gestão durante a pandemia. No mês passado, quem assumiu a direção do órgão foi o médico Dilson da Silva Pereira, que havia trabalhado recentemente para a Organização Social Hospital Psiquiátrico Espírita Mahatma Gandhi, uma das citadas na delação do ex-secretário de Saúde Edmar Santos.
Apesar de enfrentar o fantasma do desabastecimento em unidades próprias, o governo estadual anunciou esta semana a intenção de assumir o Hospital de Campanha do Riocentro, da prefeitura do Rio. Não foram dados detalhes sobre uma possível negociação.
Os números da Covid no Estado do Rio vêm crescendo há mais de uma semana. Na capital, a taxa de ocupação de UTIs estava em 93% nesta sexta. Já foram registradas 22.448 mortes pela doença, de acordo com o painel mais recente da Secretaria estadual de Saúde.
O blog questionou a assessoria de imprensa da Secretaria estadual de Saúde se não havia um planejamento anterior para o caso de um aumento de casos de Covid, que tivesse evitado com que as compras fossem realizadas de forma emergencial, e também sobre o baixo estoque de medicamentos, mas não houve resposta.
*Foto em destaque: Imagem ilustrativa de máscaras N-95 / CDC / Pexels