Nove meses pronto sem receber nenhum paciente e após duas tentativas fracassadas de contratação, o Hospital Modular de Nova Iguaçu, agora batizado de Hospital Estadual Ricardo Cruz, deve enfim abrir as portas neste sábado (3). E, se não houver mais nenhuma surpresa no meio do caminho, a Organização Social Instituto de Desenvolvimento, Ensino e Assistência à Saúde (Ideas) será a gestora da unidade, num prazo inicial de até seis meses.
Para ser a primeira colocada no processo de seleção, a OS apresentou um orçamento total de R$ 44 milhões para a implementação de 150 leitos, sendo 60 de UTI, todos voltados para pessoas com Covid. Numa olhada rápida, é algo que pode parecer vantajoso para os cofres do Estado do Rio, já que a Secretaria de Saúde havia previsto gastar até R$ 50,7 milhões para manter as atividades do hospital neste período.
Mas a história não é bem assim.
Nos últimos dias, o blog analisou os orçamentos elaborados pelo estado e pela Ideas. As diferenças são tamanhas que fazem com que, na prática, se tornem verdadeiras obras de ficção. Se por um lado, a OS prevê um gasto muito menor com pessoal do que a Secretaria de Saúde, há itens de serviços e materiais que foram estimados em valores muito maiores pela entidade, passando do dobro do previsto pela pasta.
Para completar a confusão, também foram incluídas pela Organização Social rubricas que sequer constavam do planejamento feito pelo estado para a unidade.
“Outras formas”
A publicação em Diário Oficial da convocação para a seleção da OS que irá gerir o Hospital Modular de Nova Iguaçu ocorreu no dia 11 de março. Apesar de a proposta da Ideas só ter sido efetivamente entregue à Secretaria de Saúde no dia 24, um documento que consta no processo administrativo do estado mostra que a entidade já tinha o orçamento pronto no dia 12. Ou seja, em pouco mais de 24 horas, tudo estava feito.
Nas tabelas apresentadas pela Ideas, é possível perceber que o pulo do gato da Organização Social para oferecer um valor mais baixo do que o estimado pelo estado está nos valores de repasses para pessoal.
Enquanto o estado previu, por exemplo, o pagamento de R$ 24,3 milhões de salários regulares aos funcionários e ainda separou R$ 9,9 milhões para as rescisões contratuais, a OS estimou valores bem menores para as duas rubricas. Em compensação, incluiu o item genérico “outras formas de contratação”, no valor de R$ 20,9 milhões.
Desta forma, a Ideas chegou a um valor total de pessoal de R$ 25,1 milhões, enquanto o orçamento da Secretaria de Saúde ficou em R$ 36,5 milhões.


Gastos em dobro
Muito bem. Agora vamos ao outro lado. Como as tabelas dos itens da Secretaria de Saúde e da OS não seguiram necessariamente o mesmo padrão, não é possível comparar com exatidão todas as rubricas. Mas há casos bastante evidentes de como alguns valores da Ideas são muito maiores do que os do estado, revelando, no mínimo, um caráter aleatório dos números.
Um exemplo: na estimativa feita pelo governo, a previsão era gastar, em seis meses, R$ 148 mil com gases medicinais. No orçamento da Ideas, esse valor é de R$ 540 mil. Ou seja, mais do que o dobro.
Já na soma de duas rubricas (material médico-hospitalar e laboratorial e medicamentos), o governo previu pagar R$ 3,3 milhões. A Ideas, por sua vez, orçou R$ 7,8 milhões (também mais do que o dobro), relativos a “materiais médico-hospitalares, medicamentos e EPIs UTI”.
No fim das contas, a soma de itens bastante semelhantes ficou em R$ 3,5 milhões nos cálculos do estado, enquanto nos da Organização Social ficou em R$ 8,6 milhões.


Inclusão de serviços
E os exemplos não param por aí. Com lavanderia, o governo fez uma previsão de gastos de R$ 177,6 mil. A Ideas, R$ 420 mil. Com ambulância, consta R$ 153,4 mil no orçamento da Secretaria de Saúde. No da OS, R$ 300 mil.
Outro ponto relevante foi a inclusão pela Organização Social de rubricas que não foram discriminadas no relatório orçamentário do estado. O caso mais explícito é o de “serviços de imagem (incluindo serviços médicos, profissionais técnicos e locação de equipamentos)”. No orçamento da Ideas, consta um valor de R$ 1,2 milhão para seis meses.
Chama a atenção a inclusão do item porque, recentemente numa visita ao Hospital Modular, o próprio governador em exercício, Cláudio Castro, posou para fotos ao lado de um tomógrafo. Ou seja, ao que tudo indica, a OS não teria razão para alugar mais equipamentos.
Sobrepreço
Além das rubricas de custeio, a Ideas fez um orçamento de investimento específico para outros equipamentos permanentes. Neste caso, o valor total também ficou abaixo do previsto pelo estado. A OS previu R$ 2,693 milhões, enquanto a Secretaria de Saúde estipulou o valor máximo de R$ 2,894 milhões.
O blog só localizou, porém, no processo administrativo de seleção, a cotação prévia pela pasta de dez dos 43 itens de investimento que foram listados. O mais caro no orçamento do Ideas foi uma central de monitorização para o acompanhamento do estado de pacientes na UTI. Seis unidades sairiam a R$ 600 mil. Ou seja, R$ 100 mil cada.
A título de comparação, a reportagem localizou uma compra de dezembro, de duas unidades, do Instituto Nacional de Cardiologia (INC), no valor de R$ 40 mil. Cada uma, portanto, saiu a R$ 20 mil.
Sem custos unitários
O resumo da ópera é que, se o estado passasse a fazer orçamentos prévios padronizados de cada item a ser contratado, teria uma estimativa mais precisa e que poderia permitir uma negociação com as OSs que fosse mais favorável aos cofres públicos.
Essa questão inclusive vem sendo tema no Tribunal de Contas do Estado e dentro do Executivo fluminense. No próprio processo administrativo do Hospital Modular, consta um parecer do procurador Bruno Boquimpani Silva, de 2 de março, ressaltando a necessidade de planilhas que expressem “a composição dos custos unitários”.
Mas, em geral, o que tem ocorrido no caso das OSs são orçamentos que fogem da realidade sob o argumento de que a fiscalização efetiva deve acontecer posteriormente, após os gastos serem realizados.
Sem contador
E, na seleção do hospital de Nova Iguaçu, ainda há uma cereja do bolo, que mostra o quanto é preciso evoluir. Para se ter uma ideia, no dia 25 de março, Patrícia Sant´Anna, presidente da comissão responsável por escolher a OS que irá gerir a unidade, encaminhou ofício pedindo a ajuda de um contador que pudesse auxiliar no processo porque não havia um profissional com “expertise técnica para a avaliação dos documentos contábeis”.
Depois de uma negativa da Subsecretaria do Fundo Estadual de Saúde, a subsecretária de Controladoria, Marcia Regina da Silva de Mesquita, indicou o nome do auditor-chefe da Auditoria SUS, Marco Aurélio Ferreira Brasil da Silva.
Em resposta, ele disse: “Não sou contador, sou administrador, portanto não tenho habilitação, tampouco respaldo junto ao Conselho Regional de Contabilidade para avaliar os itens descritos”.
E o pedido segue sem trâmite desde o dia 26.
Recurso contra vencedora
Teoricamente, pelo que vem sendo dito pelo governador em exercício, Cláudio Castro, o hospital modular abrirá neste sábado. Apesar de a Ideas ter sido declarada a primeira colocada no processo seletivo, ainda está em análise um recurso da outra concorrente, o Instituto Solidário, contra o resultado. Os questionamentos não têm a ver com o orçamento apresentado pela Ideas, mas sim a detalhes relativos à documentação anexada na proposta.
O atual processo é o terceiro realizado pela Secretaria de Saúde para a gestão da unidade. No mês passado, a OS Cruz Vermelha do Brasil Filial do Rio Grande do Sul (CVB-RS) quase chegou a assumir a administração do hospital, mas acabou desclassificada. O orçamento que havia sido apresentado pela entidade era ainda maior: em seis meses, seria de quase R$ 95 milhões.
O recurso contra a Ideas ainda está em análise, mas já há um entendimento prévio de que a Organização Social deve ser mesmo a vencedora.
O blog procurou tanto a Ideas como a Secretaria de Saúde com questionamentos a respeito dos orçamentos apresentados, mas não houve retorno.
*Foto em destaque: Ala interna do Hospital Modular de Nova Iguaçu / Divulgação / Governo do Estado do RJ
Excelente análise. Mais uma excelente matéria, meu caro Rubem.
Obrigado!
A interpretação do orçamento escancara um possível jogo de compadres. Eu diminuo aqui, você diz que economizou ali, onde ninguém vê (só o mala do Berta), e eu realizo meu (nosso?) lucro.
Parabéns